1 de outubro de 2013

José Tengarrinha sobre Bento de Jesus Caraça

José Tengarrinha
na Sessão Comemorativa do Centenário
do Nascimento de Bento de Jesus Caraça
promovida pela CGTP em 
18 de Abril de 2001



INTERVENÇÃO, LIBERDADE CRÍTICA E COMPROMISSO

As primeiras palavras são para a CGTP-IN, organizadora desta sessão e promotora de um vasto conjunto de iniciativas comemorativas do centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça. É de elementar justiça reconhecer, também, que o empenho desta central sindical tem sido fundamental, não apenas agora, mas nos últimos anos para que permaneça mais viva entre nós a memória e o estimulante exemplo do grande cientista e humanista.   
Foi-me pedido que, nesta sessão, falasse sobre a intervenção política de Bento de Jesus Caraça, à luz dos condicionalismos em que decorreu. O que é, também, falar do militante cultural, como duas faces indissociáveis, em ligação permanente e profunda com as incertezas e os desalentos, as esperanças e os dramas do mundo e do País nos tormentosos tempos em que viveu. Com o sentido permanente da necessidade de compreender para transformar, nessa militância constante com que encarava a sua intervenção na sociedade a favor do Progresso, da Dignificação Humana e da  Liberdade. Assim, este homem que da Matemática fez profissão, não a encarava como uma construção formal, fora da vida, mas como uma construção essencialmente humana, em permanente aperfeiçoamento, como toda a Ciência, ao serviço da libertação e da felicidade dos homens [1] . Parece fácil encontrar, neste plano, uma síntese das suas múltiplas vertentes como cidadão, como intelectual, como pedagogo. Mas descortina-se que dentro de um curso central firme e coerente há convergências estreitas, mas também distanciamentos reflexivos, nunca perdendo a perspectiva mais ampla de quem intervém para a mudança da sociedade, mas não com um sentido meramente pragmático e imediatista. Por isso, a dimensão política da sua intervenção é inseparável de uma permanente preocupação formadora, combinando objectivos de diferentes temporalidades.
Atribuía, assim, à Ideia o sentido tanto mais revolucionário quanto melhor interpretasse as aspirações gerais e essenciais da Humanidade e, ao mesmo tempo, conforme as circunstâncias do momento. Por isso, na sua intervenção política tinha como objecto não o Homem – que no abstracto legitimaria tão graves perversões – mas os homens, na sua dimensão variada e concreta. E por isso, igualmente, confere à intervenção política um denso conteúdo ético, que contrasta com a cultura política dominante no final da Primeira República e, mais ainda, no Estado Novo.
O estreito entrelaçamento entre o homem político, o homem de cultura, o  pedagogo – nem sempre num processo simples, como se disse - tem no cerne um conceito não elitista da cultura. Assim o praticou desde a direcção da Universidade Popular Portuguesa em 1919, passando pela criação da pioneira Biblioteca Cosmos (do editor e seu amigo Manuel Rodrigues de Oliveira), de 1941 a 1948, com 114 títulos e 6 990 exemplares de tiragem média!
Será errada, por isso, a meu ver, a inspiração iluminista que alguns atribuem ao seu conceito de cultura. Essa é, sim, uma das principais contradições em que se debatem os “seareiros”. E este é, também, um dos vértices que melhor definem a natureza da intervenção cultural e política de  Caraça.  Conceitos opostos de que decorrem, naturalmente, pensamentos e comportamentos políticos divergentes. Na verdade, o discurso elitista da Seara Nova (Sérgio, Cortesão, Proença, entre outros) pouco tem a ver com democracia. Poderemos mesmo dizer que é a base teórica da ditadura “esclarecida” e “de competência”. Por isso, é supra-partidária.  
Exactamente o oposto de B. J.C., para quem a democracia se sustenta, por um lado, na ampla capacidade de intervenção esclarecida dos cidadãos e, por outro, na organização partidária como instrumento indispensável dessa intervenção. Contrariamente aos “seareiros”, Caraça é, pois, um homem “de partido”. As coordenadas fundamentais do seu empenhamento cívico só serão compreensíveis no quadro de um compromisso partidário, embora aí sempre tivesse mantido toda a abertura e liberdade crítica [2] .  
Mas em que quadro partidário? O republicanismo liberal, com o seu pensamento elitista, a que correspondia uma táctica revolucionária predominantemente “putschista”, não poderia ser aquele com que se identificaria. O Partido Socialista, afastado das massas populares e longos anos inerte até se extinguir, fora uma amarga desilusão para os jovens socialistas marxistas, pelo que não poderia ser igualmente opção. A formação profundamente democrática de B. J. C. , o reconhecimento da necessidade de uma intervenção política maciça dos cidadãos, que nessa prática tinham a fonte principal da sua consciência cívica, e a sua dominante ideia do papel das massas populares e nomeadamente do proletariado na construção da sociedade futura conduziam-no, logicamente, ao Partido Comunista. Se não fossem suficientes os testemunhos já apresentados neste sentido, bastaria analisar o cerne do seu ideário e comportamento políticos para o admitirmos.
Quanto às formas dessa adesão ao PCP obviamente que, naquelas condições excepcionais, não podem ser identificadas com as actuais. Por um lado, o trabalho unitário que Bento Caraça predominantemente desenvolvia, aconselhava – como sempre em tais circunstâncias – a ocultar as suas ligações partidárias, mesmo nos círculos políticos com que se relacionava. Por outro lado, a ligação ao PCP, em tempos de tão dura clandestinidade, impedia qualquer formalização documental, frequentemente não permitia contactos regulares, por vezes espaçados meses ou até anos, dependentes de múltiplas contingências repressivas e conspirativas, e nem sequer exigia a integração num organismo com funcionamento permanente. O que era indispensável, sim, é que estivesse disponível para contactos com os dirigentes partidários, quando possível e conveniente, cumprisse a orientação consigo acordada e que esta estivesse em consonância com a estratégia geral do Partido – o que parece não haver dúvidas ter-se verificado.  Era, afinal, o único meio orgânico de que B.J.C. dispunha para se ligar às massas populares, que sempre estiveram no centro da sua acção e  pensamento políticos e pedagógicos [3] .




[1] Obriga-nos a repensar  Marc Bloch, quando este diz, expressamente: “Um grande matemático não será menor, suponho, por ter atravessado com os olhos fechados o mundo em que vive. Mas o erudito que não tem o gosto de olhar à sua volta nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimentos merecerá talvez, como dizia Pirenne, o nome de um útil antiquário. Seria sensato que renunciasse ao de historiador” (Cf. Apologie pour l’Histoire ou métier d’historien, 4ª ed., Paris, Armand Colin, 1961, p. 14). Ora precisamente B.J.C. defende que o matemático, como qualquer outro cientista, não pode em circunstância alguma deixar de estar ligado à vida, à actualidade, como diz na nota crítica sobre “A Evolução da Física, de Albert Einstein e Leopold Infeld”: “Não transparece da leitura a mais pequena relação do trabalho do físico com a vida do seu tempo. Parece que o cientista, investigador e interpretador da realidade física vive à parte, numa célula privilegiada do espaço-tempo, onde não chega o rumor das lutas e dos sofrimentos dos homens, das suas aspirações, dos seus fracassos e dos seus triunfos, da maneira como trabalham e se organizam” (In semanário O Diabo, nº223, 31-12-1938, reproduzido em Conferências e Outros Escritos, 2ªed., Lisboa, 1978, p. 267).
[2] Estes conceitos opostos de cultura  são bem visíveis na polémica entre Caraça e António Sérgio, nas páginas da Vértice, entre Novembro de 1945 e Maio de 1946.
[3] Não é assunto de somenos importância, este. Longe de reduzir-se à questão da apropriação de Caraça por tal ou tal força partidária. Deveremos afirmá-lo, em primeiro lugar, por uma razão simples: tudo nos parecendo concorrer para a verdade da conclusão a que chegámos, não há razão para ocultá-la. Em segundo lugar, porque através do conhecimento desta vinculação partidária se compreendem melhor as razões profundas de opções que B.J.C.  foi tomando ao longo da sua intensa vida política, nomeadamente o fundamento do seu ideário não apenas de combate ao regime fascista mas, sobretudo, de transformação do sistema social e da estratégia revolucionária que defende desde finais da década de 1920 até à morte; a unidade do seu percurso político encontrando aí um dos mais fortes elos. E, em terceiro lugar, porque não vejo em que é que a real universalidade da figura de Bento Caraça venha a ser afectada  por se afirmar o seu compromisso partidário; numa perspectiva histórica esta é questão absurda. Estamos aqui como historiadores, e nessa qualidade afirmarmos o que nos parece cientificamente correcto à luz de factos não falseados nem ocultados. Não é aos políticos que compete fazer História, ao sabor de conveniências pessoais ou conjunturais. Nem aos historiadores buscar falsos consensos, como aquele que em face de alguém que dizia serem dois mais dois quatro e outro que afirmava serem seis, esforçadamente afirmava serem, afinal, cinco.
                                  
                               “A descida aos infernos”
Embora ao longo da vida as traves-mestras do seu pensamento e comportamento políticos tenham permanecido constantes no essencial, embora os principais temas nunca tenham deixado de emergir com insistência, julgo que poderemos reconhecer três principais fases correspondentes a diferentes preocupações dominantes em conjunturas distintas.
Inicia-se no período entre as duas guerras, que designou como “a descida aos infernos”  e que intensa e dramaticamente viveu. É a sua primeira sistemática intervenção na vida política. Lá fora, e também em Portugal, eram os efeitos da grande depressão económico-financeira do  fim da década de 1920 e inícios da de 1930, a profunda crise social atingindo particularmente as camadas médias que tinham sido até aí os principais suportes dos sistemas políticos; era o advento de múltiplos fascismos ma Europa; era a implantação da República em Espanha, na base de uma Frente Popular, e também a Frente Popular em França; era a experiência soviética impondo-se cada vez mais às correntes progressistas – apesar dos  excessos que B.J.C. e companheiros mais ou menos claramente lhe apontavam – como via de libertação dos oprimidos; eram as crescentes ameaças bélicas de quem desenvolvia as mais poderosas indústrias do aço e química da Europa.
Internamente, desde finais de 1929, dera-se a irreversível separação das águas no campo republicano (republicanismo liberal e esquerda republicana), inevitável após as tentativas revolucionárias entre 1927 e 1931. Foi um quadro de contestação quase permanente contra a ditadura, sobretudo na Grande Lisboa e Porto, em que eclodem cinco movimentos  revolucionários, com envolvimento de militares e civis armados. Chega-se a extremos de barricadas nas ruas, ataques aéreos e bombardeamentos de artilharia sobre as cidades, fuzilamentos sumários, milhares de mortos e feridos, de presos e deportados. Em consequência, o endurecimento repressivo, com amplos saneamentos civis e militares após a subida de Salazar à chefia do Governo, provoca a diminuição do protagonismo do republicanismo político-militar. A institucionalização do Estado Novo, entre 1932 e 1934, ainda mais marginaliza a oposição republicana na cena política nacional. E é assim que, durante a guerra civil de Espanha, a resistência activa ao Estado Novo apenas contará com a intervenção dos comunistas e anarco-sindicalistas.
Era uma nova fase que se abria no quadro da oposição política ao Estado Novo. O republicanismo de esquerda perdia a absoluta hegemonia política no quadro da oposição ao fascismo.  E, em consequência das leis corporativas de Setembro de 1933 que ilegalizaram os sindicatos livres (a chamada "fascização dos sindicatos"), é o Partido Comunista, com o seu aparelho clandestino, que melhor se adapta às novas condições da luta. Sob a liderança de Bento Gonçalves, desde 1929, repudia o reviralhismo republicanista (ou “putschismo”) e procura afirmar autonomia de objectivos e de actuação.
Neste complexo quadro, a luta de B.J.C. dirige-se em dois sentidos, que se apresentavam como duas vertentes da mesma questão: contra a guerra e contra o fascismo. Inspirava-se, tal como toda a sua geração, em Romain Rolland, cujos apelos, que ecoaram por todo o mundo, motivariam as reuniões da Frente Mundial contra a Guerra, em Amesterdão (1932) e Paris (1933). Com um grupo de activistas, entre os quais José Rodrigues Miguéis, escreve intensamente em jornais legais e publicações clandestinas, desenvolve protestos e alertas públicos, participa na direcção da Liga Contra a Guerra e Contra o Fascismo, extensão nacional do Comité Mundial contra a Guerra e o Fascismo. Esta Liga, de inspiração comunista, escolhe Bento Caraça como seu representante na Frente Popular Antifascista de 1935 a 1937.
Mas essa luta contra a guerra não a limita a um simples confronto entre belicistas e antibelicistas, confere-lhe maior densidade política e social como bem ficou expresso no dramático artigo publicado no jornal Liberdade em Novembro de 1932. Diz ele:  ...”Actuar, sim, mas com um plano; nada de esgrimir contra moinhos; alcançar os pontos de enraizamento do mal; abandonar o trapo vermelho para atingir a mão que o manobra. Só assim a multidão dos pacifistas deixará de ser, na frase justa de Einstein, um rebanho de carneiros lamurientos num redil”. O seu combate teórico é por isso, também, fortemente dirigido contra os nacionalismos e as suas agressivas afirmações, ou mesmo contra esse indefinido “espírito europeu”, redutor da essência do humano na sua dimensão universalista.
Esse amplo movimento antibelicista e antifascista, que se espalhou por toda a Europa, assumia assim em Portugal um significado particular, que Bento Caraça equacionou com perfeita lucidez. Mostrava à evidência a necessidade  de dar respostas fortes e globais às questões cruciais do fascismo e do capitalismo monopolista e imperialista, a necessidade de conceber uma paz construída na base da justiça social e da fraternidade universal, a necessidade, por fim, de conceber um sistema político em que as camadas baixas tivessem os mais amplos direitos e em que se admitisse o papel criador e transformador das massas populares. Mostrava-se assim à evidência, igualmente, para além da ineficácia da estratégia revolucionária da oposição tradicional (bem evidenciada no fracasso das revoltas reviralhistas de 1927 a 1931), a desadequação do seu ideário às novas condições. Era a primeira grande ruptura com o predomínio oposicionista até aí exercido pelo republicanismo liberal e, sobretudo desde finais da década de 1920, pelo republicanismo de esquerda “seareiro”. Mas não se tratava apenas de uma nova estratégia ou de uma nova ideologia. Era, mais amplamente, uma nova cultura política que rompia com a tradicional e para a qual B.J.C. deu uma muito importante contribuição, diríamos mesmo, nalguns aspectos, decisiva.
                               A Unidade Antifascista   
A segunda fase do combate político de Bento Caraça é marcada pelo predomínio de uma estratégia revolucionária assente na unidade antifascista. Foi essa, aliás, a principal preocupação de toda a sua vida, para o que estava vocacionado com características pessoais particularmente favoráveis, como as de saber ouvir e recolher opiniões alheias, procurar entendimentos sem quebra de princípios fundamentais, capacidade de rever posições pessoais perante sugestões válidas, características que – como testemunharam alguns que com ele conviveram – se exprimiam tão claramente nos seus olhos como dois largos espaços de paz e compreensão humana.
Desde muito cedo participara em fugazes organizações como a Liga Antifascista, União Antifascista, Acção Antifascista, Pró-Pátria. Com efeito, já em 1933, face aos perigos de guerra, à irrupção dos fascismos na Europa e à institucionalização do Estado Novo se reconhecera a necessidade de uma ampla unidade dos diferentes sectores da Oposição em torno dos objectivos principais da luta contra a guerra e contra o fascismo. Mas as tentativas de republicanos e socialistas – como a Frente Única de Vigo – mostraram-se frágeis com a marginalização de comunistas e anarquistas que afirmavam influência crescente.
Enquanto noutros países, desde o início de 1933, se desenvolviam esforços para a constituição de frentes com a participação de comunistas, socialistas, social-democratas e liberais, em Portugal as forças oposicionistas nem tinham condições nem mostravam disposições nesse sentido. Sobretudo porque o reviralhismo, que ainda insistia pateticamente na táctica do “complot” e do “putsch”, continuava preso a fortes sentimentos anticomunistas.
Por fim, em Outubro de 1935, constituiu-se a Frente Popular Portuguesa, a cujo Directório pertence Bento Caraça. Nascera sob o ânimo da vitória da Frente Popular em Espanha e por impulso do Partido Comunista Português, mas não deixavam de ser visíveis as suas fragilidades. Não havia acordo nem sobre a táctica revolucionária nem sobre aspectos programáticos importantes, como a política colonial. A alteração do quadro internacional, com incidências em Portugal, e a fragilidade crescente do movimento anti-salazarista provocaram a desagregação do frentismo antifascista e, finalmente, a extinção da Frente Popular Portuguesa, em 1938-1939. Será preciso que se verifiquem alterações substanciais na cena internacional e nacional para que ressurja, mas desta vez com maior consistência, o movimento unitário antifascista.
Com a II Guerra Mundial dá-se uma transformação profunda  na Oposição em Portugal, criando condições favoráveis para uma nova plataforma da unidade contra Salazar. Sobretudo com o ambiente geral de luta antifascista e a esperança de uma vitória aliada.
Quanto ao movimento operário, que sofrera uma quebra entre 1933 e 1940, reafirma-se mais dinâmico a partir do aumento galopante da inflação e da miséria e do impulso da combatividade popular resultantes da guerra. Podemos dizer, assim, que uma relativa estabilidade do fascismo em Portugal é interrompida, sobretudo em consequência do crescente protesto operário, em 1941. Novo ciclo grevista decorre de 1942 a 1947, atingindo principalmente Lisboa e a Margem Sul. Só em Julho de 1943 estão em greve cerca de 50 000 operários, com grandes manifestações e marchas de fome. Também na década de 1940 grandes lutas camponesas no Alentejo e Ribatejo. É o Partido Comunista, reorganizado em 1941, que aparece como a força dirigente desse crescente movimento operário e camponês.  
Nestas condições, o Reviralhismo já não tem condições para marginalizar o Partido Comunista, que é aceite pelas outras correntes não só como parceiro de pleno direito, mas como impulsionador do movimento unitário. E não era apenas pela sua capacidade organizativa e adequados objectivos políticos, mas também por ser ele que estabelecia a articulação deste potente movimento popular com a Oposição Democrática.
Outras alterações favoráveis ocorreram no quadro partidário, assistindo-se ao recrudescimento da Oposição com organizações que se destacam da corrente republicanista tradicional, preenchendo assim o vazio aberto pela dissolução do Partido Socialista em 1933. Destas, a mais destacada foi a União Socialista, fundada em fins de 1943, por impulso principal de José Magalhães Godinho. Mas ainda a velha linha republicana liberal emerge com alguma influência pelo prestígio de muitas das suas figuras sobreviventes e as referências ideológicas que se lhes reconhecia.
É neste novo quadro oposicionista que surge uma formação original na Oposição Democrática, o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), onde convergem todas estas forças, sem que, ao contrário do passado, alguma delas se apresente em posição totalmente hegemónica. Aqui, Bento Caraça tem ocasião para evidenciar um dos mais excepcionais traços da sua personalidade: firmeza de princípios conjugada com a largueza de ideias, num quadro de liberdade crítica e abertura à inovação, dando um magnífico exemplo de como a força das convicções não é inconciliável com o espírito crítico e a abertura a novas ideias e caminhos.
Com alguns amigos, B.J.C. contacta todos os sectores destacados da Oposição e promove uma importante reunião em fins de 1942 ou princípios de 1943 para estabelecer as bases da unidade e promover a criação de um movimento amplo, mas clandestino, empenhado na propaganda, mas também na resistência armada. Foi o início do processo que levaria à fundação do MUNAF, em finais de 1943. O programa deste, aprovado em Julho de 1944, e para o qual Bento Caraça deu importante contribuição, era a demonstração, naquele momento histórico, da capacidade de unidade das forças democráticas. A estratégia revolucionária dominante não era já a do “putsch”. Assim é entendido na reunião em casa de B.J.C., em fins de 1944, em que se constitui o comité revolucionário secreto, emanado do MUNAF, e dirigido pelo general Norton de Matos. O processo  de conspiração militar, quase constante de 1943 a 1947, já não é, porém, alheado da intensa agitação popular, sobretudo em Maio de 1944, Agosto a Outubro de 1945 e Abril de 1947.
                                           A “Guerra Fria”
A terceira e última fase da vida política de Bento Caraça decorre no pós-guerra em que, além das motivações anteriores, sempre presentes, outras emergem em novos contextos.
As condições externas do pós-guerra, aparentemente favoráveis ao fim dos regimes autoritários em Portugal e Espanha, as declarações ambíguas de Salazar, as gigantescas manifestações populares (como a de Lisboa em Maio de 1945) alimentavam as esperanças na via eleitoral, na auto-reforma do regime e na possibilidade da Oposição ser reconhecida como alternativa legal ao regime fascista. É este o sentido da criação do Movimento de Unidade Democrática (MUD), em Outubro de 1945, apoiado no clandestino MUNAF, e que será o arranque para uma das mais vastas, organizadas e vigorosas explosões cívicas que o nosso país conheceu sob o Estado Novo.
Nestas circunstâncias, os esforços políticos de B.J.C. no pós-guerra dirigem-se em três principais direcções.
Por um lado, os seus escritos, conferências e ensino vão no sentido de abrir o País às novas correntes políticas e culturais que haviam saído da derrota do nazi-fascismo, tentando aproveitar os ventos democratizantes que corriam na Europa. É esse um dos significados do documento saído da sessão do Centro Almirante Reis em que se defendia que a próxima Assembleia Nacional fosse constituinte, a fim de permitir que o texto fundamental normalizasse a vida nacional, nomeadamente nas relações entre o poder legislativo e o executivo.
Por outro lado, os seus esforços são orientados para contrariar a argumentação fascista de que a Oposição não tinha programa nem figuras que fossem alternativas ao Estado Novo. Através de artigos, entrevistas, conferências mostra a falta de fundamento dessa acusação, enunciando com clareza o que a Oposição propunha sobre a necessidade de planificação da economia nacional, distribuição justa do rendimento nacional,  protecção à criança, analfabetismo e plano do Ensino, saúde pública, democratização e racionalização das instituições de administração pública. Saliente-se a conferência  na Voz do Operário, em 30 de Novembro de 1946, sobre a situação da educação e da cultura em Portugal durante o Estado Novo.
Ao mesmo tempo, trabalha intensamente para o reforço da unidade oposicionista dentro do MUD, para o alargamento da unidade na acção entre os democratas, de modo a intervirem de uma forma mais concertada e ofensiva. Em 1945 é eleito para a Comissão Central e, após a reorganização interna, em 1946, passa a exercer as funções de vice-presidente da Comissão Central. Nesta altura, ainda o MUD era tolerado pelo regime.
Mas, logo a seguir, o governo fascista desmascara-se completamente, desencadeando uma violenta vaga repressiva. O agravamento da “guerra fria” dava argumentos a Salazar para endurecer a agressão, na ordem interna, aos inimigos que os aliados ocidentais enfrentavam na ordem externa. Assim, a ofensiva de Salazar era selectivamente dirigida contra os comunistas, relacionando o MUD com o clandestino MUNAF e acusando-o de estar dependente do PCP.
Bento de Jesus Caraça é então preso pela primeira vez (13 de Outubro de 1946) envolvido num processo colectivo sob a acusação de actividades subversivas, que era a justificação para ilegalizar o MUD. Então, também, por ter sido co-signatário do documento da Comissão Central do MUD sobre  a admissão de Portugal na ONU sofre um processo disciplinar e é demitido da Universidade, com Mário de Azevedo Gomes. Um vergonhoso processo que mostrou a brutalidade e arbitrariedade do regime fascista e provocou uma onda de indignação no País.
Entretanto, iam produzindo os seus efeitos no campo oposicionista os ataques repressivos dirigidos pelo governo fascista selectivamente contra o Partido Comunista. A convergência entre as diversas correntes da Oposição começa a quebrar-se e a tendência de quase todas elas é para fecharem o Partido Comunista num “ghetto”: uns, porque a colaboração com o PCP lhes traz ameaças mais graves para a sua segurança pessoal (medo que, depois, mascaravam com argumentos ideológicos); outros, na linha do republicanismo liberal, porque fazem renascer antigos preconceitos anticomunistas; e outros, ainda, na linha do republicanismo de esquerda, maçónico e socializante, porque têm esperanças em ser reconhecidos como oposição cordata e credível se libertos do incómodo aliado, chegando a sugerir a cessação de toda a actividade do MUD. Era o início da irredutível cisão na Oposição Democrática que se manterá, quase sem interrupção, até 1973.
Pelas suas características pessoais, tolerantes e abertas, B.J.C. seria dos poucos, porventura o único, capaz de estabelecer a ponte entre os campos oposicionistas cada vez mais desavindos. O principal das suas energias é dirigido nessa direcção. Mas sem perder o sentido dos princípios fundamentais. O documento mais significativo que então elabora é essa penetrante análise sobre “A Posição do MUD no Momento Político Presente” (12 de Outubro de 1947), na sessão comemorativa do 2º aniversário do MUD e em nome da sua Comissão Central. Aí, depois de denunciar a escalada repressiva do Governo, ataca os que propunham a suspensão total da actividade do MUD; pelo contrário, defende que devia forçar-se a legalidade, alargando quanto possível o espaço de intervenção da Oposição Democrática, como a melhor forma de esclarecer e mobilizar a opinião pública contra o regime fascista. Para os demissionistas, directamente diz: “Se tivéssemos desaparecido da cena política talvez já uma oposição dócil estivesse instalada em nosso lugar”. Apelava, ao mesmo tempo, para que a larga congregação de democratas que era o MUD não tivesse carácter ou preocupação de ligação partidária. Tal era, também, a orientação desde então expressamente defendida pelo campo democrático de esquerda onde se situava o Partido Comunista. Por isso, todo o documento defende que só a convergência dos democratas permitiria a vitória sobre o fascismo, terminando com um apelo à UNIDADE! por três vezes vibrantemente repetido. Em vão. As fracturas no campo democrático eram cada vez mais fundas. A “guerra fria” provocava confrontos virulentos e feridas dificilmente reparáveis dentro da Oposição.
O penúltimo acto é em Março de 1948, quando chamado à PIDE para lhe ser comunicada a extinção do MUD. E logo em 25 de Junho morre, sabendo embora, como tantas vezes dissera, que “as derrotas só existem aquelas que se aceitam” e só acaba quem desiste de lutar, só acaba quem não deixa sementes.