27 de junho de 2003

Barreto no seu melhor

 


Vítor Dias no "Semanário"
Sexta, 27 Junho 2003
27 de Junho de 2003

Embora sabendo há muitos anos que a originalidade a todo o preço faz parte da imagem de marca de alguns dos mais influentes comentadores, ainda assim não podemos deixar de considerar como sintomático de algo de perverso que vai corroendo algumas consciências a última crónica de António Barreto no “Público” sobre a Constituição Europeia.

Nesse sentido, atente-se que o autor começa por referir que se entra “na fase final deste esquisito processo de elaboração de uma Constituição europeia” e que “é, aliás, discutível que esta nova «Carta» sirva realmente par algo com futuro”.

Avança de seguida com a opinião de que “a União Europeia, a Europa social e económica, (...) a Europa das nações e dos povos, não precisam de uma Constituição”, que “muito menos ainda” dela precisa “a Europa dos Parlamentos nacionais, alvo preferencial desta invenção”.

Adianta depois que esta será uma Constituição “inútil” porque “com este título, com esta força simbólica (e política!)” não parece servir “para resolver os problemas dos europeus, diferentes dos problemas europeus”, que «a distância que separa os povos e as nações das estruturas federais e comunitárias resulta ainda maior do que era” e que “com esta Constituição, vai reforçar-se a tendência, inscrita desde Maastricht, para reservar as políticas para a União, deixando os problemas para os governos e os povos”, o que considera “um estimulo ao desastre”.

Já à beira do fim do artigo, depois de lembrar que “o método de construção europeia” sempre assentou numa chamada “liberdade de escolha” que “está muito condicionada”, António Barreto sustenta que “apesar de tudo, tem de haver referendo” seja nos “países membros em geral”, seja “em Portugal em particular”, até porque esta Constituição europeia “se vai sobrepor de forma irremediável à nossa”.

Aqui chegados, não faltarão leitores que estarão a desconfiar que resolvemos preguiçar construindo um artigo de opinião comodamente assente na longa citação de opiniões alheias, embora as consideremos no geral pertinentes e lúcidas.

Acontece porém que estas longas e exactas citações das afirmações de António Barreto são indispensáveis para se poder avaliar plenamente a surpresa que aquele comentador reservou para os seus leitores no final da sua crónica intitulada “Uma Constituição inútil”.

É que, depois de ter escrito o que indesmentivelmente escreveu sobre a “Constituição europeia”, António Barreto dedica as últimas linhas do seu texto a informar o estimado público que “sou adversário desta Constituição, mas, apesar disso, votarei certamente a favor” no referendo, “pois, caso contrário, corro o risco de ficar sem Constituição, o que seria bom, mas também sem Europa e sem União, o que seria péssimo”.

Olhando as premissas enunciadas por António Barreto e a absolutamente contraditória conclusão e inclinação pessoal de voto que tira e – sublinhe-se – publicamente enuncia, é caso para dizer que, com críticos e opositores com semelhante coerência, bem podem dormir descansados os mandantes do agravadíssimo rumo federalista que se pretende impor à “construção europeia”.

Na verdade, são atitudes como a formulada por António Barreto que esses mandantes mais desejam que sejam assumidas por largos sectores de opinião pois é isso que lhes dá a certeza de que é rendoso, eficaz e impune o seu velho método de criar factos tidos como consumados que sempre pedem e justificam outros seguintes factos consumados.

Agora, neste ano da graça de 2003, sem se dar ao trabalho de explicar como ou porquê, António Barreto vem aceitar e fazer irradiar a chantagem absurda de que, sem Constituição europeia, se correria o risco de ficar “sem Europa e sem União”.

Mas, se não estamos enganados, no ano da graça de 1992, era o mesmo António Barreto, então agreste opositor do Tratado de Maastricht, que fustigava com veemência os desonestos truques de sentenciar que não haveria alternativa a Maastricht e que, estar contra esse passo, era estar contra a Europa.

Está visto que a passagem dos anos fará bem a alguns vinhos mas não a todos os comentadores.

4 de abril de 2003

 

 "Por uma nova Carta da ONU"

Vítor Dias no "Semanário"

4 de Abril de 2003

Até porque repetida depois em intervenções televisivas com o ar mais descontraído deste mundo, não nos passou ao lado o facto de Mário Bettencourt Resendes, no «DN» de 30/3, ter feito sua a afirmação alheia de que « uma vez a guerra iniciada, só se pode desejar uma vitória rápida e decisiva das forças anglo-americanas». (Tratava-se da guerra do Iraque)

Trata-se não apenas da insistência no mesmo sofisma que antes foi usado para justificar a guerra mas também da mais descarada proposta de rendição política perante os factos consumados que se podia imaginar e que teria para a Administração Bush a imensa vantagem de lhe garantir que, faça o que fizer, viole o direito internacional quanto lhe apetecer e desencadeie as sangueiras que lhe aprouver, e sempre terá a seu lado as devidas solidariedades não vá o outro lado ganhar.

De qualquer modo, dentro desta lógica dos factos consumados e no âmbito da teoria de que o direito não deve ignorar as mudanças e a realidade, lembrámo-nos de ter a franqueza - que nem os EUA nem os seus mais activos prosélitos tiveram até agora – de propor uma urgente alteração da Carta das Nações Unidas.

De facto, depois de desencadeada a agressão ao Iraque, não faz muito sentido que o primeiro objectivo da ONU seja o de «manter a paz e a segurança internacionais e com tal fim: tomar medidas colectivas eficazes para prevenir e eliminar ameaças à paz e para suprimir actos de agressão e outras violações da paz; e alcançar por meios pacíficos e em conformidade com os princípios da justiça e do direito, o ajuste ou solução de conflitos ou situações internacionais susceptível de conduzir a violações da paz» (artº 1 do Cap. I da Carta).

E, assim, é absolutamente imperioso que o citado artigo da Carta passe a dispor antes que o primeiro objectivo da ONU é «apoiar, acompanhar e executar orientações, decisões e acções decididas pelos EUA, mandatados por decreto divino para dirigir, administrar e comandar a comunidade das nações».

De igual modo, faz muito pouco sentido que no artigo 2º do Cap. I da Carta se estabeleça que a ONU «é baseada na igualdade soberana de todos os seus membros» sendo portanto imperioso que esse artigo passe a determinar que a ONU assenta em duas categorias de membros, mais concretamente «os EUA e os seus aliados mais próximos, a quem cabe a liderança do mundo, e os outros países, a quem se atribui o papel de se sujeitarem a essa liderança e a sofrerem».

Também já não tem nada a ver com a realidade que a Carta da ONU reserve para o Conselho de Segurança as decisões de recurso ao uso da força em caso de incumprimento das suas Resoluções, reserve igualmente para si próprio o poder de avaliar do seu cumprimento ou não e o poder de definir que países são encarregados de agir militarmente em nome da ONU. Acresce ainda que é igualmente uma velharia sem préstimo que, no artº 51 do Cap. VII da Carta, apenas se reconheça aos Estados «o direito imanente de legítima defesa individual ou colectiva em caso de ataque armado contra um membro das Nações Unidas» e que, ainda por cima, se acrescente que isto é «sem afectar de maneira alguma a autoridade e responsabilidade» do Conselho de Segurança «para exercer em qualquer momento a acção que considere necessária com vista a manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais».

É portanto uma evidência que todas estas normas da Carta deveriam ser urgentemente substituídas por uma único artigo que determine que « aos Estados Unidos da América é atribuída, com carácter perpétuo, a missão e a responsabilidade exclusivas e indelegáveis não apenas de interpretarem as Resoluções do Conselho de Segurança e de serem juizes do seu cumprimento ou incumprimento mas também de desencadearem, na base das suas próprias avaliações, acções armadas contra qualquer outro Estado, incluindo com carácter preventivo».

A terminar, só esperamos que os leitores compreendam que quem, como nós e com tão magníficas sugestões, é capaz de até trabalhar à borla para os EUA, não merece ser chamado de antiamericano.