29 de fevereiro de 2020

Tarrafal - memória e exempo

Intervenção de Vítor Dias
no acto público promovido pela URAP
junto ao Mausoléu aos Mortos do Tarrafal
29.2.3020


Aqui estamos, mais uma vez e como todos os anos por iniciativa da URAP, para prestar a nossa sentida homenagem aos combatentes da liberdade que morreram no Tarrafal sem nunca esquecer também todos aqueles homens nossos irmãos que estiveram longos anos aprisionados naquele inferno e a ele conseguiram sobreviver para voltarem à luta de cara levantada.
É imperioso começar por dizer que aqui estamos a cumprir uma tradição  mas é necessário acrescentar que se trata de uma boa tradição porque é uma tradição que é filha de um dever de memória, de um dever de consciência, de um dever de gratidão por todos aqueles que, assassinados no Tarrafal ou lá tendo sofrido o que hoje custa a imaginar, inscreveram a letras de sangue e sacrifício na nossa história colectiva os valores perenes  da coerência, da coragem e da firmeza de convicções democráticas.

E cremos ser adequado sublinhar nesta ocasião o profundo significado de há dis ter sido anunciado em Cabo Verde  o projecto de transformação do Tarrafal num verdadeiro museu da Resistência.
Sobretudo a pensar nas novas gerações, justifica-se lembrar sempre que se não bastassem os assassinatos de antifascistas cometidos em Portugal pelas diversas forças repressivas do fascismo, se não bastassem as bárbaras torturas infligidas a  centenas e centenas de homens e mulheres cujo único crime era o de lutarem por tudo aquilo que hoje é quase tão natural como o ar que respiramos, se não bastassem os milhares de anos passados pelos democratas nas cadeias políticas do regime,então aí estaria o campo de concentração do Tarrafal – que foi concebido, criado e dirigido para ser um campo de extermínio físico e humilhação – para mostrar que, ao contrário do que alguns de vez em quando proclamam, a ditadura fascista não foi nem branda nem suave mas antes, à sua escala, cruel, hedionda, desumana e bárbara.
Num momento de recolhimento, importa recordar que o Tarrafal, onde a partir do inicio da década 60 também sofreram os combatentes de países colonizados cuja memória também honramos, significou para mais de uma centena de antifascistas portugueses não um qualquer degredo relativamente confortável mas uma imensa distância em paragens inóspitas de familiares e amigos, a péssima alimentação, as mortíferas doenças tropicais e a flagrante e absoluta falta de assistência médica (ficou para a história amarga desse tempo a declaração de que o médico só estava lá para passar certidões de óbito), os brutais castigos como o da “frigideira”, a terrível incerteza da data de libertação e uma indescritível vivência da monótona mas angustiante passagem dos dias, das semanas, dos meses e dos anos.
Os 32 assassinados no Tarrafal não puderam conhecer o vendaval  poderoso,    alegre, feliz e entusiasmante da conquista da liberdade em 25 de Abril de 1974 mas, no nosso imaginário e no nosso coração,eles figuram ao lado dos vivos como vencedores nesse longo, áspero e sacrificado combate contra a ditadura fascista.
E bem podemos dizer que,  nestes tempos carregados de  perigos de avanço de ideias reaccionárias, racistas, xenófobas e populistas que, em muitos casos, são afinal as roupagens actuais e circunstanciais de um fascismo antigo e de fascistas que só os impactos poderosos da revolução de Abril obrigaram durante tanto tempo ao disfarce e à discrição,  importa ainda mais honraro legado histórico  de todos os resistentes que sofreram no Tarrafal.

E esse legado chama-se nenhuma tolerância com reaccionários e neo-fascistas, chama-se sólidos compromissos de vida com  os ideais da liberdade, da democracia, da paz e do progresso social, chama-se visão humanista da sociedade, do país e do mundo, chama-se capacidade de olhar as batalhas do presente com confiança e de mirar o futuro com uma esperança ancorada na luta e acção transformadora dos homens.
Até outro ano, mártires da nossa liberdade, podeis estar certos de que o vosso exemplo viverá sempre nos nossos gritos de revolta, nas nossas atitudes de insubmissão, no nosso caminho de construção e de conquista, na nossa resposta às interpelações do presente e aos desafios do futuro.