4 de março de 2005

A minha despedida do «Semanário»

Despedida

4.3.2005

Despedida
Vítor Dias no "Semanário"
Sexta, 04 Março 2005

Não constitui propriamente uma surpresa nem algo de inédito que, nas semanas que medeiam entre os resultados eleitorais e a formação de um novo governo, ocorra uma espécie de trégua ou compasso de espera entre as forças políticas e que certos confrontos de pontos de vista ou de perspectivas conheçam um considerável abrandamento.

Mas, se não andarmos a dormir na forma, rapidamente perceberemos que em muitos debates e opiniões envolvendo nomeadamente certos economistas, variados comentadores e diversos empresários continua o estendal de pressões (facilitadas pelo programa apresentado pelo PS) no sentido de que, em matérias cruciais , o novo ciclo político venha a ser caracterizado pelo mínimo possível de mudanças ao nível das políticas fundamentais.

E não se venha dizer que, com isto, lá volta um comunista a uma empedernida desconfiança em relação ao PS, porque não é certamente por acaso que, convergindo – sem o saber - com coisas que aqui escrevemos durante a pré-campanha, é uma personalidade como Mário Mesquita que, no “Público” de passado domingo, observava finamente que a campanha eleitoral tinha tido “em pano de fundo, o ruído do “financês “ que me permito definir como o discurso de conotação tecnocrática, destinado a desvalorizar a política em nome das finanças e a convencer a esquerda a governar com os programas da direita e em nome dos seus interesses e grupos de pressão”.

E, neste âmbito, Mário Mesquita aludia mesmo a que, entre outros “actores mediáticos da campanha” se tinham destacado os “especialistas” da área económica “ que rivalizavam no radicalismo das receitas previstas para reconduzir Portugal à condição de “bom aluno” da Europa, como se o partido vencedor (anunciado) – neste caso, o PS – devesse converter-se no executor testamenteiro da política económica de Manuela Ferreira Leite.”

De qualquer forma, continuando muito fortes as pressões que identificámos, se não nos enganamos, os resultados obtidos pelas forças à esquerda do PS terão, pelo menos e de imediato, contido e condicionado uma perversa tendência que a nossa memória regista como tendo ocorrido noutros períodos similares da vida nacional e que, por diversas vezes, definimos como o fenómeno da «intimidação maioritária». E que se traduzia no desvio de fundo antidemocrático que consiste em impor a ideia de que quem ganhou as eleições passou a ter a razão toda e que todas as razões e convicções dos que não ganharam as eleições devem recolher-se envergonhadamente ao limbo das reservas de consciência.

De qualquer modo, é tão certo como dois e dois serem quatro que, pausas, compassos de espera ou “tréguas” à parte, os problemas continuam aí bem vivos na sociedade portuguesa e que a política – centrada em escolhas e opções fundamentais – não tarda muito vai irromper com toda a força.

E aí iremos então ver se o PS é ou não capaz de compreender que até pode ter recebido umas centenas de milhar de votos oriundos do PSD em grande parte determinados pelo horror e desprezo pelas “trapalhadas” de Santana Lopes mas que recebeu muitos mais que, ainda que em graus diferentes, incorporam uma forte exigência e aspiração de uma política substancialmente diferente da realizada pelos dois Governos PSD-CDS que assolaram o país nos últimos três anos.

E aí, entre outras coisas, iremos também ver se no novo Governo do PS prevalecem, como foi infelizmente muito indiciado na campanha, os clamores contra «a viradeira» ou se, por atenção mínima às razões de fundo do isolamento e derrota da direita, ganham terreno, como é indispensável, orientações de corajosa rectificação de retrocessos impostos pela governação de direita em relação aos direitos dos trabalhadores, à política salarial e orçamental, à saúde e à segurança social.

E também iremos ver se o novo Governo do PS, animado pelas ideias hoje dominantes no comentário político, se deixa embalar e convencer de que a obtenção da maioria absoluta de deputados (a que, sublinhe-se, não corresponde uma maioria absoluta de votos) é uma espécie de seguro de vida tranquila e de impunidade ou se, pelo contrário, avisadamente é capaz de revisitar o período entre 1995 e 2002 e compreender que lhe terão faltado muitíssimas mais coisas do que uma maioria absoluta.

E, por fim, sabendo embora que, neste momento, se trata de escrever contra a corrente, estamos sobretudo certos de que grande parte dos portugueses, ao contrário do que o novo governo desejaria, não vão dar por encerrada em 20 de Fevereiro o exercício da sua cidadania e que, pelo contrário, com idêntica legitimidade à dos votos, vão continuar a bater-se, dia a dia, pelas soluções em que acreditam, pelas mudanças a sério a que aspiram, pelos valores, convicções e ideais com que se identificam.

Dito isto, impõe-se uma nota final de despedida dos leitores que porventura tenham acompanhado as cerca de 200 crónicas ou artigos de opinião que, sem qualquer remuneração, publicámos quinzenalmente ao longo de oito anos neste jornal, beneficiando de uma atitude de abertura e pluralismo que muitos outros jornais diários e semanários de referência continuam a não ser capazes de estender aos comunistas. Dou pois agora por terminada esta longa colaboração mas esclareço que o faço apenas por circunstâncias, compromissos e juízos próprios e jamais por causa dessas efabulações idiotas e substantivamente antidemocráticas que por aí correm e que parecem querer proibir os dirigentes partidários de terem colunas de opinião na imprensa.

 

21 de janeiro de 2005

Sobre sistemas eleitorais

 

Deriva
Vítor Dias no "Semanário"
Sexta, 21 Janeiro 2005

Condicionantes de espaço e circunstâncias de tempo não nos permitem abordar o tema com o necessário rigor e desenvolvimento, mas não podemos deixar de assinalar que na vida política portuguesa, através de múltiplas opiniões e concepções, se desenha uma perigosa deriva contra a qual é indispensável alertar e combater. Já aqui assinalámos há pouco tempo como em torno das questões orçamentais e económicas, por vezes na base de diagnósticos aparentemente consensuais sobre a gravidade dos problemas, se estava articulando um considerável conjunto de pressões visando realmente garantir a continuidade, sobrevivência ou mesmo agravamento das orientações que precisamente, a nosso ver, estão na origem da situação a que se chegou.

É agora tempo de assinalar que, simultaneamente e certamente não por acaso, com ou sem pretexto em episódios pouco recomendáveis verificados em relação às listas apresentadas por alguns partidos (sim, não é por todos, senhores distraídos!) ou em evidentes fenómenos de degradação da vida política (de que também nem todos os partidos são protagonistas), também em torno das questões do sistema político e dos sistemas eleitorais se desenha uma inquietante deriva de fundo substantivamente antidemocrático. E, neste âmbito, nem estamos a falar de coisas que nos parecem situar-se gritantemente no território da palermice, da ligeireza e da falta de senso como a proposta de António Costa para que um dos dois referendos – aborto e Constituição europeia – ou ambos se realizassem conjuntamente com as eleições locais de Outubro próximo.

Embora, arrepiados, não possamos deixar de registar que esta proposta, que significaria evidentemente que nada se discutiria seriamente, que poderia projectar sobre o voto autárquico fracturas de voto sobre a despenalização do aborto (o que nem ao PS devia convir) e que levaria a confrontar os eleitores com cinco boletins de voto, logo recebeu de uma personalidade como Vital Moreira o deslumbrado comentário de “ora aí está uma boa ideia!”.

Na verdade, estamos mais a pensar no vasto conjunto de opiniões que, em sentido muito convergente, vieram terçar armas por alterações profundas no sistema político, ou com o vector de propiciar maior facilidade à obtenção de maiorias absolutas por um só partido, ou para defender a criação de círculos uninominais ou para endeusar o progresso que seria a admissão de candidaturas independentes à Assembleia da República.

E é claro que, como corrente de fundo que alimenta estas e outras propostas, se vislumbra uma maior escalada nos juízos devastadores sobre “os partidos” ( é assim que escrevem), agora cavalgando até sondagens e estudos (como o do ICS) que revelam que mais de 70% dos cidadãos acham que “os partidos” têm os piores defeitos e “são todos iguais”.

E, embora não desconheçamos nem a gravidade do problema nem a sua complexidade, o que não podemos deixar de anotar é que faz falta que jornalistas, comentadores e até sociólogos nos contem quantas centenas de vezes na última década escreveram “os partidos” mesmo nos casos e assuntos, notórios e indiscutíveis, em que teria sido infinitamente mais rigoroso escreverem as exactas siglas dos partidos (não todos) que estavam em causa.

E também faz falta que jornalistas, comentadores e sobretudo sociólogos, sem prejuízo do carácter aterrador daquele e de outros indicadores, nos expliquem se não há alguma ambivalência nestas opiniões reveladas pelos cidadãos. É que, e reportamo-nos ao estudo do ICS, dado que 76,9% dos inquiridos respondeu concordar que “os partidos criticam-se muito uns aos outros, mas na realidade são todos iguais”, poderia supor-se que, em coerência com esse juízo, se tivessem recusado a responder a uma série de outras perguntas que nesse inquérito lhes foram feitas sobre a sua proximidade ou distância em relação a cada partido, sobre a maior ou menor simpatia por cada líder partidário ou sobre a colocação de cada partido na escala esquerda/direita. Mas não foi isso que aconteceu, antes a imensa maioria dos que tinham dito ou vieram a dizer que os partidos eram “todos iguais” pronunciaram-se concretamente sobre todas essas questões, aqui já exprimindo um seu reconhecimento subjectivo de diferenças.

Mas, voltando ao essencial, o que não podemos deixar de fustigar são as concepções daqueles que vêm defender que se alterem as leis eleitorais para que um partido alcance uma maioria absoluta de deputados com apenas 38% dos votos e se recusam a assumir com verdade que a consequência disso seria expropriar 12-13% dos votos nos outros partidos da representação parlamentar a que deviam ter direito.

O que não podemos deixar de fustigar são estes estranhos defensores da “democracia representativa” que insistem na criação de círculos uninominais (em que só se elege um candidato), e fingem não perceber que isso conduziria a que uma provável maioria de eleitores (que votou em candidatos que não ganharam) não teria representação para os seus votos, coisa que só não podem perceber os que, como António Barreto, numa linha de “democracia orgânica”, acham absurdamente que “os círculos uninominais transformam o deputado eleito em representante de toda a comunidade no seu círculo”.

E também, entre muitas outras perversões, o que não podemos deixar de fustigar são as opiniões dos que tão depressa querem que as direcções centrais dos partidos contenham escolhas populistas locais como querem soluções que só as estimulariam e que tão depressa se assustam como os perigos de “balcanização" dos parlamentos e exautoram o comportamento de um deputado “limiano” como querem privilegiar a candidaturas de independentes em prejuízo de escolhas sobre projectos políticos e corpos sistematizados de ideias.

Oxalá nos enganemos, mas fica o aviso: talvez vá fazer falta rever a experiência da Itália no início dos anos 90.