21 de janeiro de 2005

Sobre sistemas eleitorais

 

Deriva
Vítor Dias no "Semanário"
Sexta, 21 Janeiro 2005

Condicionantes de espaço e circunstâncias de tempo não nos permitem abordar o tema com o necessário rigor e desenvolvimento, mas não podemos deixar de assinalar que na vida política portuguesa, através de múltiplas opiniões e concepções, se desenha uma perigosa deriva contra a qual é indispensável alertar e combater. Já aqui assinalámos há pouco tempo como em torno das questões orçamentais e económicas, por vezes na base de diagnósticos aparentemente consensuais sobre a gravidade dos problemas, se estava articulando um considerável conjunto de pressões visando realmente garantir a continuidade, sobrevivência ou mesmo agravamento das orientações que precisamente, a nosso ver, estão na origem da situação a que se chegou.

É agora tempo de assinalar que, simultaneamente e certamente não por acaso, com ou sem pretexto em episódios pouco recomendáveis verificados em relação às listas apresentadas por alguns partidos (sim, não é por todos, senhores distraídos!) ou em evidentes fenómenos de degradação da vida política (de que também nem todos os partidos são protagonistas), também em torno das questões do sistema político e dos sistemas eleitorais se desenha uma inquietante deriva de fundo substantivamente antidemocrático. E, neste âmbito, nem estamos a falar de coisas que nos parecem situar-se gritantemente no território da palermice, da ligeireza e da falta de senso como a proposta de António Costa para que um dos dois referendos – aborto e Constituição europeia – ou ambos se realizassem conjuntamente com as eleições locais de Outubro próximo.

Embora, arrepiados, não possamos deixar de registar que esta proposta, que significaria evidentemente que nada se discutiria seriamente, que poderia projectar sobre o voto autárquico fracturas de voto sobre a despenalização do aborto (o que nem ao PS devia convir) e que levaria a confrontar os eleitores com cinco boletins de voto, logo recebeu de uma personalidade como Vital Moreira o deslumbrado comentário de “ora aí está uma boa ideia!”.

Na verdade, estamos mais a pensar no vasto conjunto de opiniões que, em sentido muito convergente, vieram terçar armas por alterações profundas no sistema político, ou com o vector de propiciar maior facilidade à obtenção de maiorias absolutas por um só partido, ou para defender a criação de círculos uninominais ou para endeusar o progresso que seria a admissão de candidaturas independentes à Assembleia da República.

E é claro que, como corrente de fundo que alimenta estas e outras propostas, se vislumbra uma maior escalada nos juízos devastadores sobre “os partidos” ( é assim que escrevem), agora cavalgando até sondagens e estudos (como o do ICS) que revelam que mais de 70% dos cidadãos acham que “os partidos” têm os piores defeitos e “são todos iguais”.

E, embora não desconheçamos nem a gravidade do problema nem a sua complexidade, o que não podemos deixar de anotar é que faz falta que jornalistas, comentadores e até sociólogos nos contem quantas centenas de vezes na última década escreveram “os partidos” mesmo nos casos e assuntos, notórios e indiscutíveis, em que teria sido infinitamente mais rigoroso escreverem as exactas siglas dos partidos (não todos) que estavam em causa.

E também faz falta que jornalistas, comentadores e sobretudo sociólogos, sem prejuízo do carácter aterrador daquele e de outros indicadores, nos expliquem se não há alguma ambivalência nestas opiniões reveladas pelos cidadãos. É que, e reportamo-nos ao estudo do ICS, dado que 76,9% dos inquiridos respondeu concordar que “os partidos criticam-se muito uns aos outros, mas na realidade são todos iguais”, poderia supor-se que, em coerência com esse juízo, se tivessem recusado a responder a uma série de outras perguntas que nesse inquérito lhes foram feitas sobre a sua proximidade ou distância em relação a cada partido, sobre a maior ou menor simpatia por cada líder partidário ou sobre a colocação de cada partido na escala esquerda/direita. Mas não foi isso que aconteceu, antes a imensa maioria dos que tinham dito ou vieram a dizer que os partidos eram “todos iguais” pronunciaram-se concretamente sobre todas essas questões, aqui já exprimindo um seu reconhecimento subjectivo de diferenças.

Mas, voltando ao essencial, o que não podemos deixar de fustigar são as concepções daqueles que vêm defender que se alterem as leis eleitorais para que um partido alcance uma maioria absoluta de deputados com apenas 38% dos votos e se recusam a assumir com verdade que a consequência disso seria expropriar 12-13% dos votos nos outros partidos da representação parlamentar a que deviam ter direito.

O que não podemos deixar de fustigar são estes estranhos defensores da “democracia representativa” que insistem na criação de círculos uninominais (em que só se elege um candidato), e fingem não perceber que isso conduziria a que uma provável maioria de eleitores (que votou em candidatos que não ganharam) não teria representação para os seus votos, coisa que só não podem perceber os que, como António Barreto, numa linha de “democracia orgânica”, acham absurdamente que “os círculos uninominais transformam o deputado eleito em representante de toda a comunidade no seu círculo”.

E também, entre muitas outras perversões, o que não podemos deixar de fustigar são as opiniões dos que tão depressa querem que as direcções centrais dos partidos contenham escolhas populistas locais como querem soluções que só as estimulariam e que tão depressa se assustam como os perigos de “balcanização" dos parlamentos e exautoram o comportamento de um deputado “limiano” como querem privilegiar a candidaturas de independentes em prejuízo de escolhas sobre projectos políticos e corpos sistematizados de ideias.

Oxalá nos enganemos, mas fica o aviso: talvez vá fazer falta rever a experiência da Itália no início dos anos 90.