Respostas de Vítor Dias
ao inquérito no nº 1 da «Imprópria»
A esquerda, a esquerda democrática, as esquerdas, a esquerda comunista, a esquerda reformista, a esquerda revolucionária, uma esquerda popular, a extrema-esquerda, a esquerda transformadora, os socialistas, a esquerda progressista – inúmeras são as expressões que são utilizadas por quem se situa à esquerda do espectro político-ideológico. De que falamos quando falamos de esquerda?
O tipo de questões suscitadas por este inquérito seria sempre um interessante Rossio e qualquer espaço para as respostas, ainda que chegasse ao ponto de maçar os leitores, seria sempre uma pobre Betesga. Prefiro por isso avisar que respondo com uma elevada dose de simplificação, se não mesmo de esquematismo, e que, em regra, afirmarei sem suporte na devida argumentação. Sobre o que é esquerda e o que o não é, apetecer-me-ia dizer que quem tem a sua a acha, naturalmente, a mais consistente e estruturada, a mais promissora e a mais eficaz em termos de avanços civilizacionais e de transformação social.
Creio entretanto que, salvo em circunstâncias excepcionais ou de acompanhamento da linguagem corrente, faz pouco sentido falar da «esquerda», antes sendo mais rico e exacto falar de «esquerdas» (num plural que obviamente põe em evidência a existência de um pluralismo e pluralidade de forças ou organizações diferenciadas). E o que ainda faz menos sentido sãos casos, infelizmente muito numerosos, de jornalistas ou comentadores que, sabendo perfeitamente que estão só falar do PS, em vez de gastarem apenas esses dois caracteres preferem gastar oito referindo a «esquerda».
Dito isto, quero anotar que, por mais voltas que se dê e não procedendo eu a qualquer amálgama brutal entre o PS e o PSD e o CDS, o ponto nodal do impasse português para uma alternativa de esquerda está precisamente em que o PS, a meu ver, não pode ser considerado um partido de esquerda, por muito que, generosamente, queiramos atenuar as suas orientações, políticas e práticas governativas com considerações sobre um seu certo património histórico, aspirações de uma parte porventura ainda significativa da sua base social de apoio e de outros aspectos.
A esquerda com que me identifico tem como matriz fundadora e fundamental elemento identitário o objectivo da superação do capitalismo através da construção de um socialismo que tenha colhido as principais lições dos trágicos fracassos e derrotas do final do século XX e encontrado as respostas possíveis, ainda que provisórias, para as grandes interpelações e desafios que aqueles fracassos colocaram em cima da mesa. Mas para quem, como eu, o processo histórico é movimento de luta e de avanços parciais, e não a espera de uma qualquer «grand soirèe» revolucionária, fala-se de esquerda quando se fala de ideias, forças ou projectos que, em curto, se opõem decididamente à selvajaria neoliberal em curso, mantêm o inabalável propósito de subordinar o poder económico ao poder político democraticamente eleito, defendem os serviços públicos e a sua universalidade, estão comprometidos com o aprofundamento da democracia e com o fomento da participação e intervenção dos cidadãos, com a valorização do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, considerando sempre estes como os principais criadores da riqueza das nações.
Entre a esquerda e os chamados intelectuais é frequente pressupor-se uma relação de afinidade, relação que foi objecto de vários debates ao longo do século XX. Na senda desses debates e no actual contexto de transformação económico-cultural, que relação existe e que relação deve ser procurada entre a acção política e o campo intelectual, da ciência e produção de conhecimento à cultura e produção artística?
Creio que os laços e o seu grau ou intensidade podem variar, mas não concebo que possa haver acção política minimamente consistente sem atenção ou relação estreita com o campo intelectual, com a ciência e produção de conhecimento, com a cultura e produção artística, mas também – é bom lembrá-lo – sem uma sólida radicação social e entrosamento com os problemas e aspirações das pessoas «comuns». A articulação acima referida é tanto mais necessária e indispensável quando se trata da acção política de uma força ou partido organizado e estruturado, onde isso tem de ser feito quer pela integração e activa participação dos intelectuais e criadores que são membros desse partido quer por uma grande atenção e reflexão sobre ideias ou propostas formuladas «exteriormente», mesmo que diferentes ou até hostis ou antagónicas, pois estas são, não poucas vezes, um insubstituível estímulo para o aprofundamento das nossas próprias razões e argumentos.
Porém, ao contrário do que alguns por vezes parecem julgar, não se trata apenas de um problema de vontade ou abertura de espírito. É que a vida de um partido, ou em termos mais gerais de forças ou organizações políticas e sociais, tem características, exigências, condicionantes e constrangimentos, prioridades e exigências de acção e tarefas práticas que, com frequência, reduzem inevitavelmente o espaço para certo tipo de estudos e reflexões. E, por outro lado, há intelectuais, sociólogos, politólogos que, como é seu direito, nunca foram filiados em partidos e que estão, em seu prejuízo e limitação, a anos-luz de realidades até bastantes elementares sobre o que é a vida corrente de um partido político.
Dito isto, e se outras razões não houvesse, até pela crescente complexificação dos problemas e das sociedades, nenhuma dúvida resta de que a relação invocada na questão colocada continuará a ser por muito tempo um acidentado e exigente, mas crucial, desafio e necessidade.
Entre os movimentos sociais e a política institucional, onde fica a esquerda? Que relação entre as diversas formas de participação nas instituições do Estado (parlamento, governo) e formas de acção política que se situam à sua margem? Relação de oposição? De complementaridade?
Entendamo-nos com toda a franqueza: pertenço a uma força política para quem, em grande medida, estas dicotomias e conflitos não fazem grande sentido. Há anos e anos que o PCP – e eu próprio tenho dedicado alguma atenção ao tema – combate a tendência, as concepções e as práticas no sentido de apresentar e tornar os partidos em elementos do aparelho de Estado (tendência sucessivamente patente nas leis de financiamento), e não, como originariamente e de raiz deviam ser, associações voluntárias de mulheres e homens livres, agregados ou unidos em torno de uma ideologia e de um projecto político, que inclui naturalmente o exercício do poder político e a participação nas instituições democráticas (o que não os faz deixar de pertencer à «sociedade civil»). E, de caminho, tenho também causticado com alguma vivacidade essa estranha entorse intelectual que consiste no seguinte: se se fala de partidos, só se vê dirigentes e estruturas e nunca os muitos milhares de cidadãos que neles militam; se se fala de «movimentos de cidadãos», só se vê «cidadãos» e nunca os dirigentes ou estruturas, por reduzidas que sejam. Por outro lado, sou membro de um partido que jamais se limitou a um papel de representação de interesses ou delegação de confiança e que, exercendo-as de facto nas instituições em que está presente, dedica parte fundamental dos seus esforços e da sua organização ao estímulo à intervenção directa dos cidadãos em defesa dos seus interesses ou em causas que mais directamente os mobilizam.
Novos ou antigos, muitos movimentos sociais são uma componente essencial de uma democracia viva, mas, em minha opinião, serão fogos-fátuos ou factores de retrocesso democrático todos os que se alinharem, mais ou menos explicitamente, por uma rejeição generalizante da política, dos políticos e dos partidos.
Os Estados Unidos – muitos o dizem e creio que com razão – são o país mais associativo do mundo, com uma impressionante galáxia de movimentos de opinião, de organizações sociais ou de direitos cívicos, cobrindo uma extraordinária diversidade de centros de interesse e de causas erguidas por uma admirável dedicação e generoso trabalho voluntário de centenas de milhares de cidadãos. No entanto, como sabemos, raramente algo disso consegue romper os deliberados bloqueios criados pelo sistema político norte-americano.
Anotado isto, ainda que da forma incompleta que invoquei no inicio, apenas duas observações:
- uma é que, para mim, permanece válido o apelo final do líder sindical norte-americano do principio do século XX, pouco antes de ser enforcado: «Don´t mourne, organize!»;
- e a outra é que não é porque haja quem não queira tomar conta da política que a política deixará de arbitrariamente tomar conta das suas vidas.
A esquerda tem pátria e classe social? Como se situa a esquerda perante as diferentes escalas do poder político, do local ao global, passando pelo nacional? E em relação às diferentes classes sociais? Como se relaciona a esquerda com as lutas de classes?
Creio que com outras correntes de esquerda assim não será, mas a minha esquerda, e com muito orgulho e enraizada convicção, tem pátria (Portugal) e tem classe social (a classe operária, os trabalhadores e diversas outras classes ou camadas sociais que, pelos seus interesses objectivos ou subjectivos, se sentem identificadas ou podem vir a sentir-se identificados com um projecto de superação do capitalismo). A minha esquerda é, coerente e naturalmente, patriótica (e, por causa das moscas, repito um milhão de vezes, não nacionalista) e internacionalista. E, sem negar as complexidades e dificuldades de acerto que por vezes a história traz, não vê conflito entre o local e o global, entre o nacional e o internacional.
A intensificação e aperfeiçoamento de formas de cooperação internacional entre organizações sindicais, outras organizações ou partidos que se reclamam de esquerda é uma difícil mas inadiável tarefa e exigência dos tempos presentes e da própria globalização.
Mas porque os países existem e é neles que vivem os povos e as pessoas (que são os verdadeiros protagonistas da história), para grande escândalo de muitas ideias circulantes, continuo a considerar o marco nacional como o terreno mais decisivo, mais estruturante e mais eficaz para as lutas do presente e do futuro, sem o qual, tudo bem espremido, certas concepções alegadamente «internacionalistas» pouco iriam além do uso da Internet, de comunicações por e-mail e da deslocação de delegações nacionais a alguns eventos de âmbito internacional.
E, a este respeito, porque a actual crise que atravessa o sistema capitalista, como era fácil prever, está dando um novo impulso a favor do federalismo na União Europeia, volto a afirmar que aqueles que, à esquerda, dele se fazem campeões, esquecidos patentemente dos interesses de classe subjacentes e das políticas dominantes, apenas estão a dar a sua ajuda para que as políticas neoliberais sejam ainda mais rigidamente e uniformemente aplicadas em cada país membro da União Europeia.
Por mim, nenhuma esquerda minimamente consequente, mesmo que as não veja como o principal motor da história, pode deixar de considerar que se as classes e os seus interesses existem, então, ainda que de formas por vezes diferentes das do passado, a luta de classes é um processo sempre presente e marcante na história do nosso tempo.
É frequente afirmar-se que o Estado social é uma das conquistas mais importantes das forças políticas e sociais de esquerda e quase todas as esquerda consideram hoje que se trata de um património a proteger, contra as tendências de privatização. Que caminho fazer neste debate, por um lado, entre o público e o privado e, por outro, entre reforma e revolução?
O processo de brutal ataque ao chamado «Estado social» (antes chamar-lhe assim que chamar-lhe «Estado-providência», essa estranha tradução de welfare state), dêem-se as voltas que se derem, é uma das mais expressivas consequências da derrota das experiências de construção do socialismo, já que nunca foi uma benévola concessão das democracias cristãs ou da social-democracia, mas fruto de lutas heróicas dos trabalhadores europeus tendo como elemento animador (e assustador para as classes possidentes nacionais) as conquistas sociais obtidas no Leste europeu. Pertenço a um partido que não sustenta, nem para hoje nem para amanhã, a total estatização da vida económica. A existência de um variado sector privado não está em causa, o que está em causa, já no limite máximo em Portugal, é a violação do princípio constitucional da coexistência de sectores económicos diversificados. Toda a campanha dos grandes grupos económicos contra o papel do Estado é uma pura falácia, uma vez que outra coisa não desejam, e disso têm largamente beneficiado, que o Estado seja um instrumento da concentração capitalista (como foi durante o fascismo).
Mais delicado e prenhe de equívocos e o problema da velha e clássica oposição entre «reforma» e «revolução». Militante de um partido que, já muitos anos antes do 25 de Abril, rejeitava a ideia de «modelos» de revolução, não pretendo transpor para outros países «vias únicas» para a revolução. Para aqueles que, como os comunistas portugueses, aceitam que a sua luta se desenvolve no quadro consagrado na Constituição, a verdadeira dicotomia não estará entre abstracções crismadas de «reforma» ou de «revolução», mas entre reformas (as mais das vezes, contra-reformas) que visam salvar o capitalismo e reformas democráticas e progressistas que não só não são incompatíveis com transformações futuras mais radicais como constituem avanços no acidentado e incerto processo de luta pelo socialismo.