Intervenção de
Vítor Dias
na iniciativa sobre os
40 anos do 3º
C.O.D.
7.12.2013
Aveiro
Queria começar
naturalmente por agradecer às entidades promotoras desta iniciativa,
que saúdo fraternalmente, o convite para participar nesta evocação
e reflexão em torno de uma grande batalha democrática que há 40
anos teve um enorme alcance, um poderoso significado e relevantes
consequências no curso da luta antifascista até à conquista da
liberdade e à inesquecível Revolução de Abril.
Permitam-me também que
sublinhe a muito justa participação na promoção desta
iniciativa da revista Seara Nova, porque, para além do seu longo
papel na resistência à ditadura, a sua redacção foi um importante pólo operacional e político na preparação do 3º Congresso da
Oposição Democrática e é à Seara Nova que ficámos a dever o
autêntico serviço público democrático da edição em vários
volumes das conclusões do Congresso.
Queria ainda, em fim de
preâmbulo, manifestar o meu apreço pelo momento de evocação e
homenagem por Flávio Sardo a Mário Sacramento, grande figura da
gesta da resistência antifascista e de intelectual comunista que
integra a justo título uma valiosa galeria de intelectuais que deram
uma notável contribuição para a força, prestigio e enraizamento do
PCP na sociedade portuguesa.
Como creio que todos podem
calcular os protagonistas, mesmo que modestos, de acontecimentos como
o 3º COD, deparam-se sempre com o problema de, ao falarem sobre ele
40 anos depois, se escolherem repetir pelo menos em parte análises
e balanços feitos à época (e também mais tarde, como é o caso da importante comunicação de José Tengarrinha em 1998, aqui nesta cidade, na
celebração do 25º aniversário do 3º COD), e nos quais se
continuam a reconhecer, poderem de alguma forma maçar os seus
contemporâneos embora, por outro lado, as grandes linhas de força
dessas análises passadas pudessem ser úteis para um público mais
novo ou menos idoso.
O casamento de um assumido
embaraço na determinação das matérias a abordar com as minhas
próprias limitações levam-me pelo caminho de vos apresentar apenas
uma desenvolvida anotação relativa a uma questão ou abordagem que
me parece fulcral.
Antes dela, dizer-vos porém
que, se tivesse optado antes por seleccionar um conjunto de
fragmentos acessórios, aqui estaria a falar, por exemplo:
- sobre o 3º Congresso enquanto emanação directa (graças à concordância dos democratas de Aveiro) das estruturas as oposição democrática que, ao contrário do que terá ocorrido no periodo 65-69, mantiveram entre 69 e 73 uma actividade estável;
- sobre como me parecem erróneas e pouco informadas afirmações que põem em contraste, de um lado, a útil e interessante comunicação apresentada por Medeiros Ferreira sobre a participação das Forças Armadas na solução do problema político português e, de outro lado, as Conclusões do Congresso (que, segundo alguns, padeceriam de falta de capacidade premonitória), matéria em que tentaria explicar por que razão, a meu ver, não seria adequado o 3º COD pronunciar-se sobre a escaldante e nada consensual questão das vias para o derrubamento do fascismo:
- sobre como, com 47 anos de experiência de repressão, no seu último ano de vida o regime ainda conseguiu «inovar» e refinar os constrangimentos e limitações à oposição nas suas farsas eleitorais, designadamente quando nas eleições de Outubro de 1973 instituiu que só podiam falar nas sessões os candidatos efectivos, que nenhum candidato podia falar fora do distrito onde concorria e sobretudo quando publicou, a 12 dias do início da campanha, um decreto-lei que estabelecia a perda de direitos políticos por cinco anos para todos os candidatos e membros das Comissões Eleitorais que desistissem de ir às urnas ou apelassem à abstenção;
- ou ainda sobre como a leitura dos nomes dos mais de 500 membros da Comissão Nacional ( e não 60 como por gralha se diz numa obra recente) e a ampla participação no Congresso, mesmo sendo apenas a parte visível de um icebergue, revelaram a primeira – a composição da CN - que a oposição democrática dispunha dos quadros e da massa crítica que viria a permitir um feito um pouco esquecido que foi, imediatamente a seguir ao 25 de Abril e num quadro de corajosa desfascização, assegurar a administração corrente do Estado e a vida sociedade portuguesa, sem perturbações de maior; e a segunda – a ampla participação nos trabalhos – que revelava que, com particular destaque desde meados dos anos 60, se tinha formado um numeroso e poderoso (perdoem a expressão, que aliás detesto) «exército político» que, conquistada a liberdade e sem necessidade de minuciosas orientações, se empenhou e garantiu de forma decisiva o que então chamávamos as tarefas de democratização da vida nacional.
Entrando agora sim na
minha única ou principal anotação, ela visa salientar que,
havendo obviamente importantes diferenças substantivas,
organizativas e de contexto entre o II Congresso Republicano em
1969 e o 3º COD em 1973, o ponto nodal de comparações e
verificação de mudanças e evoluções é entre as propostas
programáticas e a arrumação de forças e correntes políticas no
3º Congresso e as que se haviam verificado nas eleições de 1969
(pelo menos, como é sabido, em 3 distritos), estas em decorrência
directa das diferentes análises e atitudes que, no seio da oposição
democrática, se manifestaram aquando do momento-chave da chegada de
Marcelo Caetano a Presidente do Conselho em 1968.
Possivelmente,
se perguntados sobre qual foi a posição e análise do PCP em
contraste e divergência com a então manifestada por outros
sectores oposicionistas, muitos democratas responderão que se
lembram bem das expressões «continuação do salazarismo sem
Salazar», «operação ou manobra de demagogia
liberalizante» destinada, segundo o PCP, a alargar interna e
externamente as bases de apoio ao regime, dividir a oposição,
isolar os comunistas e salvar o essencial do regime) e que constaram
do comunicado do Comité Central do PCP de Setembro de 1968. Mas
talvez muito menos se lembrem com nitidez de outras afirmações
que, inseparáveis das primeiras e , a meu ver, a anos-luz de
qualquer fixismo ou rotina de análises, sublinhavam que «não
se deve perder de vista as dificuldades actuais do regime que abrem
novas perspectivas ao movimento democrático nacional»
e que enfatizavam «a necessidade de aproveitar
audaciosamente a nova situação para quebrar o imobilismo político,
exigir o cumprimento de quaisquer promessas demagógicas do governo,
imprimir um novo curso à vida política, impulsionar a acção
política e a luta popular de massas».
E é minha firme convicção que foi a aplicação perseverante e audaciosa desta linha política que inspirou toda uma série de lutas e acontecimentos dos mais marcantes até ao 25 de Abril, desde logo, sem desprimor para outros com diversificadas origens, os seguintes:
E é minha firme convicção que foi a aplicação perseverante e audaciosa desta linha política que inspirou toda uma série de lutas e acontecimentos dos mais marcantes até ao 25 de Abril, desde logo, sem desprimor para outros com diversificadas origens, os seguintes:
- a crise académica de Coimbra em Abril e Maio de 1969 e outras corajosas lutas estudantis em Lisboa e Porto nos anos seguintes;
- a intervenção combativa e fortemente mobilizadora das CDEs na farsa eleitoral de Outubro de 1969 com uma posição clara contra a guerra colonial;
- a formação do Movimento Democrático de Mulheres ainda em 1969 na sequência ds sua organização especifica no quadro das CDE;
- - a criação em Novembro de 1069 do MJT – Movimento da Juventude Trabalhadora;
- a constituição no final de 1969 da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos;
- a formação da Intersindical em Outubro de 1970 e o posterior e vasto movimento de acções e de lutas conduzidas pelas direcções sindicais da confiança dos trabalhadores;
- a criação, como resultado directo de decisões de estruturas CDE, de um conjunto de cooperativas livreiras (como hoje se diria, factores de sociabilidades na resistência e pontos de apoio ao trabalho político) que logo o governo veio combater com o DL 52o/71 e que viriam a ser encerradas em 1972, após o que, na minha suspeitíssima opinião, constituiu uma mais brilhantes e criativas lutas legais dos últimos anos do fascismo;
- o próprio inicio das acções armadas da ARA em Outubro de 1970;
- a fundação da União dos Estudantes Comunistas em 1972 contribuindo para um renovado impulso para as lutas estudantis;
- e finalmente, sem esquecer a vaga de greves operárias dos primeiros meses de 1974, naturalmente o 3º Congresso da Oposição Democrática de 1973 (em que a decisão de manter a romagem é uma pedra de toque de toda a orientação e atitude que referi atrás) e a intervenção na farsa eleitoral de Outubro de 1973 defrontando um impressionante vendaval repressivo e que marcaram a recomposição da unidade das principais correntes antifascistas (verdade se diga, com a excepção do que, por facilidade de expressão, podemos chamar os grupos de Jorge Sampaio e de Isabel do Carmo, que se afastaram por divergências de natureza substancial). Não se devendo, quanto a mim, esquecer entretanto que a arrumação de forças não pode ser vista pelos olhos e critérios de hoje e que tem de ser justamente valorizada a contribuição de muitas centenas de democratas que, à época, não tinham uma expressa ou definida vinculação partidária.
- sendo ainda de referir - e trata-se de um ponto importantíssimo - a influência muito positiva que estas duas últimas grandes batalhas tiveram na consciencialização política e fixação de objectivos programáticos do MFA, como entre outros, o Almirante Martins Guerreiro tem impressivamente testemunhado em diversos colóquios.
Ao sublinhar estes aspectos
não descuro a importância que para o fracasso da operação
desenhada por Marcelo Caetano em 1968 tiveram o atoleiro da guerra
colonial ou as pressões dos «ultras» mas estou solidamente
convicto que foi esta orientação combativa que deu a maior
contribuição para o referido fracasso.
Se não vos chocarem duas
sínteses mais prosaicas, então eu diria que primeiro a maioria e
depois a totalidade do campo democrático já não se contentava com
o pouquíssimo que o fascismo tinha para oferecer ou conceder e que o
que se passou foi que onde o marcelismo abria uma frincha numa porta,
nós metíamos logo o pé, a seguir queríamos meter a cabeça sempre
com o nunca abandonado de fazer passar o corpo todo.
Talvez alguns historiadores
digam, e já o disseram, que esta é a história do caminho para uma
nova hegemonia na oposição democrática, no sentido rigoroso do
termo e não no sentido pejorativo que correntemente o degradou)
embora para mim a base fundamental dessa hegemonia já existisse em
1969.
Mas há um ponto que é
vital que fique claro: não estou aqui a evocar ou celebrar a vitória
de ninguém sobre ninguém mas sim a dar o meu testemunho sobre o que
creio ter sido o caminho andado e feito e a adesão democrática e
livremente conquistadas para ideias, análises, orientações e
atitudes que, passo a passo, a vida ia comprovando serem as mais
justas, mais necessárias e mais eficazes.
Aliás peço que aceitem
como autêntico e sincero o meu testemunho de que, em relação a
personalidades de outros quadrantes políticos (não todas
evidentemente), talvez por causa de uma coisa a que chamaria «ética
da resistência», o que mais guardo na memória não são os
conflitos e divergências, sejam os de 68/69 sejam os do pós-25 de
Abril, mas os combates que, com lealdade e fraternidade travámos
juntos.
É agora tempo de concluir
com três afirmações:
- a
primeira é que têm o mais alto valor todas as iniciativas de
preservação da memória histórica da resistência antifascista
mas estou certo de que nenhum de nós se esquece que foi na
revolução de Abril que se inscreveram as mais belas páginas das
nossas vidas e se levantaram do chão os melhores sonhos e
realizações do povo português;
- a segunda é que, para ser sincero, dói e causa muita amargura que, quarenta anos depois do 3º COD e quase 40 após o 25 de Abril, ver a sanha destruidora e reaccionária de uma política que está arrasando o país, devendo eu confessar que nunca na vida julguei que chegasse um dia em que, sob pena de assustar e desanimar, nem sequer possa dizer publicamente toda a verdade sobre as terríveis consequências futuras do crime contra o nosso povo e a nossa pátria a que estamos a assistir mas que combatemos sem descanso;
- e
a terceira é que, assim como nunca soube responder ou me ocupei
muito com a interrogação sobre quando o fascismo cairia, também
hoje não sei quando conquistaremos – e para mim aqui é que bate
o ponto e não simplesmente num novo governo - a política
efectivamente alternativa
à que aqui nos conduziu e, de ciência certa, só sei que não há
outro caminho que a persistência na esperança e na luta.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Nota complementar: só para que fique escrito em algum lado, creio ser útil referir que, durante o painel com historiadores, a muito valiosa e bem preparada intervenção do Prof. Reis Torgal incluiu incidentalmente uma referência a que em 1973 o «interesse pelas eleições» já seria menor, referindo que o número de distritos em que em 1973 foram apresentadas candidaturas democráticas foi muito inferior ao número de distritos de 1969. Pedi a palavra para esclarecer algo que não vem em nenhum documento e que, por si só, demonstra a importância que a história oral pode ter. Com efeito, dei o meu testemunho de que essa diferença de candidaturas se ficou fundamentalmente a dever à publicação do decreto, a 12 dias do inicio da campanha, que fazia perder por 5 anos os direitos políticos a quem desistisse, pois em numerosos distritos (noutros não) muitos advogados com considerável peso distrital acharam que iam ficar impedidos de exercer a sua profissão e decidiram não entregar as candidaturas nesses distritos. Quarenta anos depois, não vale a pena esconder que se tratou de um momento de certa tensão nas fileiras da oposição democrática em torno de uma questão sem dúvida delicada mas que, aparecendo a poucos dias da entrega das listas, não permitiu a sua superação, designadamente através da designação de novos candidatos em substituição daqueles estimáveis advogados democratas. Pareceu-me que o Prof. Reis Torgal compreendeu a pertinência da minha informação.