Intervenção de sua filha
Geninha Varela Gomes
Geninha Varela Gomes
Ao
meu Pai, João Varela Gomes, no seu 90.º aniversário
Desta
vez, coube-me a mim falar em nome dos filhos. É uma imensa
responsabilidade que não enjeitei e um sentimento de orgulho
impossível de medir.
Começo
por agradecer à Casa do Alentejo, nomeadamente ao seu presidente,
João Proença, pelo pronto acolhimento dado a este almoço de
aniversário e por todas as facilidades concedidas, sem qualquer
hesitação. Agradeço igualmente a todos os que contribuíram para a
organização desta festa: ao meu Tio João Sequeira, ao Manuel Duran
Clemente e ao Raul Zagalo, indispensáveis e incansáveis na
concretização dos convites e na sua confirmação. À Maria
Adelaide devo todo o socorro e apoio no quotidiano da organização
de uma festa desta envergadura.
Por
fim, agradeço a presença de todos. Como sabem, esta celebração
não é pública. Todos os que aqui estão foram pessoalmente
convidados. São por ele, pelo meu Pai, reconhecidos como amigos,
companheiros, camaradas de armas. São por ele respeitados e
acarinhados. Fazem parte da vida do meu Pai. O nosso obrigado a
todos.
Apesar
de gostar mais de falar de improviso, optei por escrever e ler este
papel. Tive medo de não aguentar. E mesmo assim… vamos lá ver! Os
tempos não estão fáceis e tenho a emoção e a sensibilidade à
flor da pele. É uma das heranças do meu Pai. Como ele costuma dizer
quando se refere às crianças, a qualquer criança, tive medo de
ficar “com as pernas partidas”, isto é, sem defesas.
Muito
do que aqui vou dizer sobre o meu Pai, é igualmente extensível à
minha Mãe. Somos uma família unida por laços absolutamente
indestrutíveis pelo amor, pela adversidade, pela luta e pela
tragédia. Provavelmente, quando a minha Mãe fizer 90 anos, irei
repetir grande parte do que hoje, aqui, vos vou dizer.
Esta
festa de aniversário do meu Pai é-lhe devida há 46 anos. 1968 foi
o ano em que o meu Pai completou 44 anos de idade. Foi o ano em que
foi libertado. Às 6 horas da manhã do dia 1 de Janeiro desse ano,
numa madrugada escura e gelada, abriu-se o portão do Forte de
Peniche e saiu um homem ainda jovem, mas aparentemente envelhecido,
silencioso e de boca crispada. Galgou o lambril inferior da porta e
de imediato se ouviu o som forte do seu encerramento brusco. Cá
fora, a minha Mãe e 4 miúdos ansiosos e nervosos.
Nesse
ano, para festejar a sua saída da cadeia e o seu aniversário, os
meus pais quiseram organizar uma festa com os amigos, no dia 24 de
Maio, na Casa da Horta, a casa grande do meu avô. A PIDE proibiu a
realização da festa. Era uma reunião perigosa e subversiva. A
alegria da recém-readquirida liberdade esbarrou logo na ingenuidade
“telefónica” dos organizadores e no medo enorme que a PIDE tinha
do meu Pai e do que ele representava ou podia representar.
Este
almoço de aniversário em que nos encontramos, por circunstâncias
diversas e adversas da vida, levou 46 anos a preparar. Mas para nós,
nunca ninguém tanto o mereceu.
Meu
Querido Pai João:
Era
assim que nós os quatro, seus filhos miúdos, iniciávamos as cartas
que lhe escrevíamos durante os seus 6 longos anos de cadeia. Não
era um qualquer “querido pai”. Era o Pai João, o nosso Pai e de
mais ninguém.
E
essa sim, apesar de o Pai ser completamente avesso à propriedade
material, é uma propriedade verdadeiramente inalienável e
intransmissível.
Nem
sempre foi fácil sermos filhos dos nossos pais. Em Janeiro de 1962,
eramos todos muito pequenos, fomos literalmente despertados, a meio
da noite, para a luta antifascista. Desde muito cedo que a linha
divisória entre o BEM e o MAL ficou traçada na nossa matriz.
Quero
aproveitar esta oportunidade, a celebração dos 90 anos do meu Pai
para, em público, agradecer em nosso nome, em nome da família
Varela Gomes, a todos os que nesses anos de dificuldades nos deitaram
a mão, nos aguentaram, nos deram guarida, comida, solidariedade e,
principalmente, amor. Especialmente a todos os nossos TIOS, com
particular destaque para o Tio Fernando. Quero também lembrar os
Tios já falecidos, que nunca nos falharam: Ticha, Luís, Francisca e
Cândida. Acima de todos, queremos agradecer ao nosso Avô Joaquim,
para a minha geração o verdadeiro patriarca e senhor do castelo
encantado que era a Casa da Horta. Temos para com todos uma dívida
que nunca poderá ser saldada.
Ser
filho de alguém que é reconhecido por Herói por muita gente… e
por inimigo figadal por outra tanta (felizmente, em número menor),
provocou sentimentos e reacções contraditórias em todos nós.
Durante muito tempo, antes de pronunciarem o nosso nome, fomos sempre
apresentados como sendo filhos de… e de…E se caíamos na asneira
de dizer primeiro o nosso nome, vinha logo a pergunta certa: “É
filho ou filha de…?”. Tivemos de percorrer a vida e o caminho da
maturidade para encarar esse facto com serenidade.
O
meu Pai, para nós, é perfeito… apesar de todos os seus defeitos,
que me escuso de enumerar por não ser isso que aqui nos trouxe! Nós
os quatro sempre tivemos por ele um imenso e profundo respeito,
admiração e amor. Para o meu irmão Chapi, que lembro com uma
enorme saudade que nunca se apaga, estes sentimentos eram
absolutamente incondicionais e inabaláveis.
O
meu Pai e a minha Mãe ensinaram-nos a coragem e a gramática; a
lealdade e a matemática; a frontalidade e a geografia; a honestidade
e a filosofia; a solidariedade e a história; a responsabilidade e a
literatura; a generosidade e a físico-química. Alimentaram-nos,
vestiram-nos, educaram-nos, acarinharam-nos. Proporcionaram-nos
livros, filmes, conversas, reflexões, teatro, dança, viagens.
Ensinaram-nos a fazer pela vida e a ser pessoas úteis e activas,
quase desconhecedoras do significado do verbo “desistir”. Onde
até a escolha da morte pode ser e foi uma forma de afirmação e de
resistência.
Ensinaram-nos
a lutar! Mostraram-nos o lado certo da barricada! Num instante
passámos do mundo dos índios e dos cow-boys,
para o mundo dos explorados e oprimidos, de um lado, e dos
exploradores e opressores do outro. E nunca, em nossa casa, houve um
momento, um instante sequer, de hesitação sobre o lado certo da
vida, o caminho que devia ser percorrido. A vida foi mais pesada, é
certo, mas foi e é uma vida que merece ser vivida.
PAI:
a sua vida e a sua luta foram e são, por inteiro, merecedoras de
todo o nosso apoio e respeito.
É
certo que provocaram ódios irracionais e perseguições arbitrárias
e injustas.
É
certo que o ter estado às portas da morte, a prisão (antes e depois
do 25 de Abril) e os diversos exílios (antes e depois do 25 de
Abril), nos roubaram muitos anos de convívio e de aprendizagem, de
amor e de vida familiar.
Mas
o seu legado de coragem, de coerência, de honestidade e de luta é
incomensuravelmente mais importante e muitíssimo maior do que as
adversidades e revezes passados.
E
sem nunca querer nada em troca. Sem nunca querer benesses ou
reconhecimentos hipócritas. Sem nunca querer tirar dividendos ou
vantagens. Antes pelo contrário!
PAI:
O seu exemplo está marcado bem fundo nas nossas vidas e no nosso
carácter. Nas nossas, seus filhos, e na dos seus netos. Os seus
netos tiveram o privilégio de poder contar sempre consigo. De poder
passar consigo uma infância de que nós, seus filhos, fomos
espoliados. E o amor, a atenção, a disponibilidade, a brincadeira
educativa e o apoio constante dispensado aos seus netos foram para os
seus filhos a compensação dos anos que nos roubaram. E para os seus
netos, algo que será, para sempre, insubstituível.
Passados
90 anos de vida e 52 anos sobre a sua prisão, infelizmente não
podemos dizer que o mundo e o país são aquilo por que lutou toda a
vida. Mas dizemos com toda a firmeza que empenhou toda a sua vida
para os tornar melhor e mais justos. Que arriscou a sua vida para
conquistar a liberdade e para acabar com os parasitas e com a
exploração de quem trabalha.
Termino
com alguns curtos excertos da defesa por si apresentada na barra do
tribunal fascista, o Tribunal Plenário da Boa-Hora, no julgamento da
Revolta de Beja. Continuam actuais, são o espelho do seu carácter e
marcaram decisivamente as escolhas e a vida de todos nós:
(e
cito) “…Mas se a caminhada tem sido penosa, se numerosas têm
sido as baixas e pesados os sacrifícios, algo de extremamente
precioso se conquistou para cada um de nós e para a colectividade:
uma nova fraternidade que foi forjada na luta comum travada sem
tibiezas nem renúncias….”
(e
mais à frente) “…E é esse laço fraterno que me fica unindo a
Vocês, meus companheiros em Beja na madrugada do primeiro dia de
1962 e que através de 30 meses de prisão aqui trouxeram uma
inalterada fé e inquebrantável ânimo, que nos liga a todos que em
Portugal não temem e que aqui ergueram uma voz firme e não
ambígua…”
(segue
mais abaixo) “…E se na primeira fila de resistência tem sempre
havido representantes de todos os quadrantes doutrinários, é justo
destacar os comunistas portugueses pela sua indefectível presença e
avultado quinhão de sofrimento. O que faço à vontade, pois que nem
a PIDE, com todo o seu fanatismo inquisitorial, me conseguiu vestir
esse sambenito…”
(e
finaliza) “…Ao abandonar esta barra, o meu mais fervoroso voto, o
meu apelo, é que, quanto antes, outros triunfem onde nós fomos
vencidos, pela salvação da nossa Pátria bem amada.”
Casa
do Alentejo, Lisboa, 24 de Maio de 2014
Geninha
Varela Gomes