Vivemos
em tempo de globalização. E não falta quem queria convencer-nos de
que os males do mundo, sendo males da globalização, são males
inevitáveis, tão inevitáveis
como a própria globalização, consequência necessária da
revolução científica e
tecnológica do nosso tempo. Não faria sentido, por isso, ser contra
a globalização, porque,
tal como o sol nasce todos os dias, o progresso científico e
tecnológico é algo inerente
às sociedades humanas, e a globalização é filha dele.
É,
em última análise, o pseudo-argumento de que não
há alternativa ao capitalismo
e ao neoliberalismo, que está por detrás das políticas
de globalização neoliberal.
Argumento utilizado mesmo por alguns que, dizendo-se de esquerda, se comportam
como uma espécie de “esquerda choramingas”, uma ‘esquerda’
que lamenta, com
uma lágrima ao canto do olho, o desemprego, a precariedade, as
desigualdades e a exclusão
social, mas que se recusa a identificar as suas causas estruturais,
para não ter de
as
combater, levando tudo à conta da globalização
incontornável,
para a qual diz que não há
alternativa.
Esta
é uma ‘leitura’ amiga do grande capital financeiro, que é o
grande impulsionador (e o único aproveitador) da política
de globalização neoliberal e o autor e difusor desta
visão ideológica (distorcida) sobre a natureza e o significado da globalização.
Carregando nas tintas para sublinhar bem a minha ideia, direi que
‘acreditar’
na autenticidade deste retrato da globalização é o mesmo que
acreditar que o lançamento
das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaqui foi uma consequência inevitável
do desenvolvimento científico na área da Física Nuclear e que a
utilização maciça
de armas químicas contra o povo vietnamita durante a Guerra do
Vietnam foi uma consequência
incontornável do desenvolvimento científico na área da química.
Estes
crimes de guerra (verdadeiros crimes
contra a humanidade)
foram decisões
políticas
tomadas
no quadro da política
imperialista dos
EUA. Pois bem. A política
de globalização
neoliberal é
isto mesmo: uma ‘guerra’ contra os trabalhadores, que não tem dispensado
o recurso a “armas de destruição maciça” (Warren Buffet), à
especulação
criminosa
(sobre ‘produtos financeiros derivados’, sobre matérias-primas,
sobre combustíveis,
sobre alimentos, enfim, à especulação
sobre a vida de milhões de pessoas) e
não dispensa o recurso a toda a espécie de práticas criminosas que
caraterizam o capitalismo
do crime sistémico do
nosso tempo.
As
políticas
de globalização neoliberal são
políticas
ao
serviço do objetivo do grande
capital financeiro de dominar o mundo, políticas
inspiradas
nos princípios da contra-revolução
monetarista (Hayek,
Milton Friedman...) e nos dogmas da ideologia neoliberal,
políticas
impostas
pelo grande capital financeiro, que vêm condenando povos
inteiros
ao empobrecimento acelerado, cortando os direitos e os rendimentos
dos trabalhadores,
condenando ao desemprego e à precariedade quase metade dos jovens, aumentando
o número dos pobres
que trabalham,
agravando a exclusão
social, traduzindo-se
numa autêntica guerra
civil (uma
guerra
de classes à
escala mundial) que, neste
mundo antropofágico, produz todos os anos (num tempo em que os
ganhos da produtividade
permitem a criação de riqueza a níveis até há pouco
insuspeitados) tantas vítimas
da fome ou de doenças causadas pela fome quantos os mortos da 2ª
Guerra Mundial.
Nos
primeiros tempos da revolução industrial os operários viram nas
máquinas o seu
‘inimigo’ e por isso as destruíram e sabotaram. Cedo
compreenderam, porém, que o seu
inimigo de classe nunca poderiam ser as máquinas, mas uma outra
classe social.
Ninguém
de bom senso e de boa fé pode cometer hoje o mesmo erro,
considerando que a origem
dos nossos males está na revolução científica e tecnológica.
Seria imperdoável que
o fizéssemos: a revolução científica e tecnológica não pode ser
confundida com a globalização
nem pode ver-se nesta o resultado inevitável daquela.
O
que está mal na globalização atual não é a revolução
científica e tecnológica que
torna possíveis alguns dos instrumentos da política
de globalização neoliberal,
mas o
neoliberalismo
que
a alimenta, a estrutura dos poderes em que ela se apoia, os
interesses que
serve, cada vez mais os interesses da pequena elite do grande capital
financeiro especulador.
A
crítica da globalização
neoliberal não
pode, pois, confundir-se com a defesado
regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e
do progresso. Como a História
tem demonstrado, o
desenvolvimento científico e tecnológico é o caminho da
libertação
do homem.
A partir de 1967, as
crises sucederam-se nas economias capitalistas. Mas os primeiros
sinais da crise
estrutural do capitalismo foram
a rotura unilateral dos Acordos de
Bretton Woods por parte dos EUA (1971) e as chamadas crises
do petróleo (1973-1975
e 1978-1980). Estes dois episódios (que colocaram as políticas
keynesianas perante o
enigma da estagflação
e trouxeram para o
primeiro plano a tendência
no sentido da baixa
da taxa média de lucro)
mostraram os limites do estado keynesiano e das políticas keynesianas
e colocaram o keynesianismo em grandes dificuldades.
Destas
crises resultou a vitória da contra-revolução
monetarista e a
substituição do
consenso keynesiano
pelo chamado
Consenso de Washington,
que procurou ‘codificar’
os dogmas inscritos no catecismo monetarista e neoliberal, na
tentativa de travar
aquela perigosa tendência.
Inspirado
no velho dogma liberal segundo o qual o desenvolvimento dos povos só pode
resultar do livre
funcionamento da economia,
os ‘mandamentos’ fundamentais deste dito
‘consenso’ são, em síntese, os seguintes: plena liberdade de
comércio; liberdade absoluta
de circulação de capitais à
escala mundial (a ‘mãe’ de todas as liberdades
do capital);
um mercado único de capitais à escala mundial; desregulação
completa de todos os
mercados, em especial os mercados financeiros; privatização, por
puros preconceitos
ideológicos,
do setor público empresarial, incluindo as empresas que produzem e fornecem
serviços públicos
(até a água!) e as
empresas e os setores estratégicos que constituem
o alicerce da soberania e da independência nacional; o ‘dogma’
da independência
dos bancos centrais,
com a consequente ‘privatização’ dos próprios estados,
que, como qualquer cidadão, dependem dos ‘mercados financeiros’
para o financiamento
das suas políticas; princípio
da banca universal,
que permite aos bancos fazer
todo o tipo de ‘negócios’ com dinheiro, abrindo o caminho ao
capitalismo de casino; plena
liberdade de ‘produção’ em série de complexos produtos
financeiros derivados (as
tais
armas de destruição
maciça), capital
puramente fictício que serve apenas para alimentar
os jogos de casino;
regra de ouro do
equilíbrio orçamental; aplicação de sistemas
fiscais que favorecem os ricos e sufocam os pobres; combate
prioritário à
inflação
e desvalorização das políticas de promoção do emprego e de
combate ao desemprego,
porque este é sempre desemprego
voluntário, pelo
qual são responsáveis os sindicatos
(que não aceitam a baixa
dos salários) e as
‘imperfeições’ introduzidas no
mercado
de trabalho (salário mínimo garantido, subsídio de desempego,
segurança dos postos
de trabalho, em suma, os direitos decorrentes do estado
social, os direitos fundamentais
dos trabalhadores);
esvaziamento da contratação coletiva (talvez por se
saber,
graças à OIT, que ela tem sido, ao longo das últimas décadas, um
instrumento mais efetivo
de redistribuição do rendimento em sentido favorável aos
trabalhadores do que as
próprias
políticas de
redistribuição do rendimento de
inspiração keynesiana); ‘flexibilização’
da legislação laboral (precarização do emprego, facilitação dos despedimentos,
aumento do número de horas de trabalho não pago); desmantelamento
do estado
social,
‘confiscando’ os direitos económicos, sociais e culturais dos
trabalhadores (que
muitas constituições consagram como direitos
fundamentais dos trabalhadores), sacrificando
os salários, os direitos e a dignidade dos trabalhadores e pondo em
causa a
própria
democracia, na tentativa de compensar a subida dos custos
financeiros, contrariar a
baixa tendencial da
taxa média de lucro e
entregar ao capital os
ganhos da produtividade.
Após
o desmoronamento da União Soviética e da comunidade socialista, os neoliberais
de todos os matizes convenceram-se, mais uma vez, de que o
capitalismo tinha garantida
a eternidade, podendo regressar impunemente ao ‘modelo’ puro e
duro do
século
XVIII. As políticas neoliberais vieram acentuar a exploração dos
trabalhadores, assumindo
sem disfarce o genes do capitalismo como a civilização
das desigualdades.
O
neoliberalismo consolidou-se como ideologia dominante. E o
neoliberalismo não
é o produto inventado por uns quantos ‘filósofos’ que não têm
mais nada em que pensar.
O neoliberalismo não existe fora do capitalismo, antes corresponde a
uma nova
fase
na evolução do capitalismo. O neoliberalismo é o reencontro do
capitalismo consigo mesmo,
depois de limpar os cremes das máscaras que foi construindo para se
disfarçar.
O
neoliberalismo é o capitalismo puro e duro do século XVIII, mais
uma vez convencido da
sua eternidade, e convencido de que pode permitir ao capital todas as
liberdades, incluindo
as que matam as liberdades dos que vivem do rendimento do seu
trabalho. O
neoliberalismo
é o capitalismo na sua essência de sistema assente na exploração
do trabalho
assalariado, na maximização do lucro, no agravamento das
desigualdades. O neoliberalismo
é a expressão ideológica da hegemonia do capital financeiro sobre
o
capital
produtivo, hegemonia construída e consolidada com base na ação do
estado capitalista,
que é hoje, visivelmente, a ditadura
do grande capital financeiro.
Ao
longo da década de 1990, a aplicação do Consenso
de Washington permitiu
ao grande
capital financeiro recuperar a liberdade de movimentos de que gozara
nos anos 1920
e que conduziu à Grande
Depressão. Graças
às políticas neoliberais, o proclamado capitalismo
sem crises deu lugar
ao capitalismo de
casino, ao
capitalismo do risco sistémico,
ao capitalismo sem
risco e sem falências para
os bancos, ao capitalismo
do
crime
sistémico.
A globalização
neoliberal é, antes
de tudo e acima de tudo, um projeto político,
levado a cabo de forma sistemática pelos grandes senhores do mundo,
apoiados, como
nunca antes na História, pelo poderoso arsenal dos aparelhos
produtores e difusores da
ideologia dominante, responsáveis pelo totalitarismo do pensamento
único.
Todo
o edifício da globalização
neoliberal (o
império do capitalismo
neoliberal) foi
obra construída por políticas
ativas orientadas
para alcançar os resultados que nos querem
apresentar como consequências inevitáveis do progresso científico
e tecnológico.
Foram
as instituições do poder político (os estados nacionais e as
organizações internacionais
dominadas pelo capital financeiro e pelos seus estados) que
desmantelaram todas
as estruturas e mecanismos de regulação e de controlo da atividade
financeira que
vinham
dos tempos do combate à Grande
Depressão dos anos
1930, contando com a cumplicidade
ativa de uma regulação
amiga do mercado.
Os
EUA abriram o caminho, abolindo em 1974 o controlo sobre os
movimentos de
capitais. Em 1979, foi a vez do Reino Unido, seguido pelo Japão em
1980. Na Europa, o
Tratado de Maastricht (1992) veio impor aos estados-membros da UE o
princípio da
livre
circulação de capitais,
não só dentro do espaço comunitário, mas também nas relações
com países terceiros.
Em
geral, os membros do chamado G7 desempenharam neste processo um papel decisivo,
ao imporem a todo o mundo a lógica ‘libertária’ no que toca aos
movimentos de
capitais. O FMI (controlado, de facto, desde há muito, pelas grandes
potências
capitalistas,
e, em particular, pelos EUA) foi o instrumento escolhido para, em
nome da chamada
‘comunidade internacional’, executar esta missão. A partir da
década de 1970,sempre
que um país recorre aos serviços do FMI, este condiciona o apoio
pretendido à aceitação,
pelo país em dificuldades, dos princípios da livre
convertibilidade da moeda e da
livre circulação
internacional de capitais.
A OMC, que em 1995 substituiu o GATT, passou
a aplicar os princípios do livrecambismo não apenas aos produtos
industriais e agrícolas,
mas também aos serviços, aos investimentos e à propriedade
intelectual, acentuando
o peso do livrecambismo
enquanto ideologia
das potências dominantes, ao
proclamar
que o caminho do
desenvolvimento exige
a plena liberdade de
comércio e a liberdade
absoluta de circulação de capitais.
A
concretização do programa neoliberal inscrito no Consenso
de Washington tem sido
facilitada pela emergência de um verdadeiro mercado
mundial de força de trabalho, um
elemento novo na caraterização do capitalismo global, que muitos
consideram “a
principal
consequência social da mundialização”, e que não existia em
1916, quando Lenine
publicou o estudo clássico sobre O
Imperialismo: um
enorme exército de
reserva de
mão-de-obra foi
colocado à disposição do grande capital, sujeitando os
trabalhadores
a
uma concorrência dramática e constituindo um estímulo poderoso à
deslocalização de empresas,
em busca de mão-de-obra mais barata e sem direitos.
Invocando enganosamente
o velho estado mínimo
de Adam Smith, os ideólogos
do neoliberalismo mudaram mais uma vez a máscara do estado
capitalista, munindo-o
de outras armas (estado
regulador ou estado
garantidor), para
que ele pudesse cumprir
o seu papel nas condições históricas das últimas três ou quatro
décadas.
Mas
o estado capitalista
não desapareceu,
nem sequer enfraqueceu, porque, ao contrário
de uma certa leitura que dele se faz, o neoliberalismo, como a
presente crise tornou
evidente, exige um estado
de classe cada vez
mais forte.
Só
um estado forte poderia
ter criado as condições que permitiram levar à prática os
comandos do Consenso de
Washington,
dispensando o compromisso
dos tempos do estado
social keynesiano, substituindo-o pela violência
do estado
neoliberal, que se
vem abatendo
sobre os trabalhadores.
Há
mais de cinquenta anos o argentino Raúl Prebisch (o primeiro
Presidente da CEPAL)
avisou que as soluções liberais só poderiam concretizar-se pela
força das armas.
As
ditaduras militares que o imperialismo semeou em vários países da
América Latina comprovaram
a razão deste diagnóstico.
No
início dos anos 1980 foi o insuspeito Paul Samuelson quem chamou a
atenção (numa
Conferência no México) para os perigos do “fascismo de mercado”.
E em 1981 Beltram
Gross escreveu um livro sobre o “fascismo amigável”.
Nestes
últimos anos, foi a vez de autores como Amartya Sen e Paul Krugman avisarem
o mundo de que “a concentração extrema do rendimento” significa
“uma democracia
somente de nome”, “incompatível com a democracia real”,
chamando a nossa
atenção
para “os perigos que uma recessão prolongada coloca aos valores e
às instituições da
democracia.” O combate contra as políticas neoliberais é, por
isso mesmo, um combate pela
dignidade e pelos direitos dos trabalhadores, mas é também um
combate pela
democracia.
Está-se a
construir um novo Leviathan,
que vem substituindo a política
pelo mercado, governando
segundo as ‘leis do mercado’ como se estas fossem a constituição
das constituições,
negando a
política e a cidadania, matando a democracia.
Um
Leviathan que,
enquadrado pela ideologia neoliberal, se identifica com o poder
económico e, sobretudo,
com o poder financeiro, colocando acima de tudo as liberdades
do capital e
assumindo-se, sem disfarce,
como a ditadura do
grande capital financeiro.
Muitos
dos mais destacados sociólogos vêm insistindo na tese – que a
análise do que
se tem passado nos últimos trinta ou quarenta anos confirma
inteiramente – de que o projeto
político da Nova Direita consiste em uma economia
livre e
um estado
forte,
um estado
capaz de “restaurar a autoridade a todos os níveis da sociedade”
e de dar combate aos
inimigos
externos e
aos inimigos
internos (A.
Gamble).
Wolfgang
Streeck fala de um processo de esvaziamento
da democracia cujo objetivo
é o de conseguir a “imunização do capitalismo contra
intervenções da «democracia
de massas”, libertando o mercado das exigências da vida
democrática e
assegurando
o “primado duradouro do mercado sobre a política.”
Este
processo – sublinha Streeck – vem sendo prosseguido “através
de uma reeducação
neoliberal dos cidadãos”, porque não está disponível atualmente
a hipótese de
“abolição da democracia segundo o modelo chileno dos anos 1970.”
Mas fica o aviso.
As
soluções ’brandas’ que têm sido adotadas só serão
prosseguidas se “o modelo chileno dos
anos 1970” não ficar disponível para o grande capital financeiro.
Se as condições o permitirem
(ou o impuserem, por não ser possível continuar o aprofundamento da
exploração
dos trabalhadores através dos métodos ‘sofisticados’ atualmente
utilizados), o
estado capitalista pode vestir-se e armar-se de novo como estado
fascista,
sem as máscaras
que atualmente utiliza.
Costuma
atribuir-se a Roosevelt a afirmação segundo a qual permitir o
domínio da
política pelo “dinheiro organizado” é mais perigoso do que
confiar o governo do mundo
ao “crime organizado”. Seja quem for o autor deste diagnóstico,
ele traduz bem a realidade
atual e encontra nela plena confirmação: a coberto da sacrossanta
liberdade
de circulação
do capital e
da livre
criação de produtos financeiros derivados,
o dinheiro organizado
vem
cometendo toda a espécie de crimes, crimes que afetam a vida e a dignidade
de milhões pessoas, humilhando povos inteiros, empobrecidos à força
para satisfazer
as exigências dos grandes ‘padrinhos’ do crime
organizado.
Estes crimes, cometidos
pelas instituições financeiras e pelos seus administradores, em vez
de ficarem impunes
(porque, como lembra The
Economist,
os bancos não são apenas too
big to fail, são
também too
big to jail),
deveriam ser considerados crimes
imprescritíveis,
porque eles
são, verdadeiramente, crimes
contra a humanidade.
A vida mostra que o
homem não deixou de ser o lobo do homem. Mas os ganhos
de produtividade resultantes da revolução científica e tecnológica
que tem caraterizado
os últimos duzentos anos de vida da humanidade dão-nos razões para acreditar
que podemos construir um mundo de cooperação e de solidariedade, um
mundo capaz
de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos
os habitantes do
planeta.
Este
é um tempo de grandes contradições e de grande desespero. Pablo
Neruda deixou-nos
esta mensagem: “Dai-me toda a dor do mundo./ Vou transformá-la em esperança.”
Pois bem. A nossa obrigação é fazer como Neruda, transformando
este tempo
de
desesperança num
tempo de esperança.
Sendo
a globalização neoliberal um projeto
político, os
adversários da globalização,
empenhados em evitar uma nova era de barbárie, temos de ser capazes
de pôr
de pé um projeto
político alternativo,
que assente na confiança no homem e nas suas capacidades,
um projeto inspirado em valores e empenhado em objetivos que “os
mercados”
não reconhecem nem são capazes de prosseguir, um projeto que
rejeite a lógica
determinista que nos quer impor, como inevitável, sem
alternativa possível,
a atual globalização
neoliberal, uma das
marcas desta civilização-fim-da-história.
Esta
é a equação correta para compreender o capitalismo dos nossos
tempos, as suas
forças e as suas fraquezas.
Já
em 23.9.2000 The
Economist escrevia
em editorial: “Os que protestam contra a
globalização têm razão quando dizem que a questão moral,
política e económica mais urgente
do nosso tempo é a pobreza do Terceiro Mundo. E têm razão quando
dizem que
a
onda de globalização, por muito potentes que sejam os seus motores,
pode ser travada.
É
o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que torna os que
protestam contra a globalização
tão terrivelmente perigosos.” Num momento de lucidez, um dos
faróis do neoliberalismo
veio dizer o que nós já sabíamos: os motores
da globalização neoliberal
podem
ser parados ou mesmo postos a andar em marcha atrás; a
inevitabilidade da globalização
neoliberal é um mito; a tese de que não
há alternativa é
um embuste.
O
capitalismo globalizado pelo grande capital financeiro ganhou força,
por um lado.
Mas as suas contradições e as suas debilidades estão sujeitas aos
efeitos tão bem traduzidos
na velha máxima segundo a qual maior
a nau, maior a tormenta.
Perante
as contradições desencadeadas pela própria globalização
neoliberal, temos
razões para acreditar que a globalização “aciona forças que
colocam em relevo não somente
a incontrolabilidade do sistema por qualquer processo racional, mas
também, eao
mesmo tempo, a sua própria incapacidade de cumprir as funções de
controlo que se definem
como sua condição de existência e legitimidade.” (I. Mészáros).
Como
salientava, há já vinte anos, Eric Hobsbawm, “o nosso mundo corre
o risco de
explosão e de implosão. (…) Há sinais, tanto externamente como
internamente, de que chegámos
a um ponto de crise histórica. (…) O mundo tem de mudar (…) e o
futuro não pode
ser uma continuação do passado.”
Tem
inteira razão o grande historiador inglês. Neste tempo de crise
estrutural do capitalismo
(o capitalismo do crime
sistémico), os
trabalhadores do Brasil, da América Latina,
da Europa, dos EUA e de todos os continentes hão-de compreender a
urgência de
transformar
o mundo, começando
por mudar as políticas levadas a cabo nas últimas três ou
quatro décadas pelo estado
capitalista, cuja
natureza de classe
talvez em nenhum outro
período da história do capitalismo tenha sido tão evidente como
hoje.
Para
sairmos desta caminhada vertiginosa para o abismo, é necessário
evitar que o
mercado substitua a política, que as ‘leis do mercado’ se
sobreponham aos normativos constitucionais
e que o estado
democrático ceda o
lugar a um qualquer estado tecnocrático.
Cabe-nos
a todos uma responsabilidade enorme nas lutas a travar, tanto no que
se refere
ao trabalho teórico
(que nos ajuda a
compreender a realidade para melhor intervir sobre
ela) como no que respeita à luta
ideológica (que nos
ajuda a combater os interesses estabelecidos
e as ideias feitas), porque a luta
ideológica é, hoje
mais do que nunca, um fator
essencial da luta política e da luta social (da luta de classes).
É
um trabalho longo e difícil. Vale a pena fazê-lo acompanhados da
música de Chico
Buarque, que, em tempos de ditadura, sonhava e cantava o seu “sonho
impossível”, porque
acreditava nele e nos apontava o caminho: “Lutar, quando é fácil
ceder / (…)
Negar,
quando a regra é vender / (…) E o mundo vai ver uma flor / Brotar
do impossível chão”.
Porto Alegre, 28 de Janeiro de 2018