2 de outubro de 2015

Afastando o nevoeiro




O presente artigo tem como objectivo demonstrar, do ponto de vista jurídico-constitucional, esta afirmação:
A Coligação PSD e CDS não será chamada a formar Governo (minoritário), ainda que porventura ganhasse as eleições legislativas por maioria relativa.
A Coligação “Portugal à frente” só teria condições para repetir a formação de Governo nos mesmos moldes do anterior, se ganhasse com maioria absoluta.
Frequentemente, diz-se: “Quem ganhar as eleições, será Primeiro-Ministro”.
Será assim?
A frase é incorrecta — é um erro pensar assim.
Desde logo, o Governo não é “eleito”, mas sim nomeado pelo Presidente da República (PR). As eleições servem para eleger Deputados à Assembleia da República (AR).
Não existem “candidatos a Primeiro-Ministro”, do ponto de vista jurídico-constitucional.
Desde logo, não há um círculo eleitoral nacional criado por lei. Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais. Cada eleitor vota num círculo eleitoral em que se encontra recenseado.
As eleições legislativas servem o objectivo de eleger Deputados.

As fases de formação do Governo

1. A primeira fase é a da “nomeação” (e não “eleição”) do Primeiro-Ministro (artigo 187.º, n.º 1), por parte do PR.
Para tal, o PR tem: i) de ouvir “os partidos representados na” AR; ii) e de ter “em conta os resultados eleitorais” (artigo 187.º, n.º 1, da Constituição).
Isto indica que, salvo casos excepcionais, o Governo é uma emanação da AR.
Porém, diferentemente do que se possa pensar, o PR não se encontra juridicamente obrigado a nomear para Primeiro-Ministro o chefe do partido ou da lista mais votada.
Com efeito, o aludido artigo 187.º, n.º 1, não inculca que haja um dever de nomeação do Chefe do Partido mais votado.
Aliás, no caso de haver uma maioria parlamentar pouco sedimentada (quando não haja maioria absoluta de partido ou de lista), ou seja, uma dispersão de votos, a margem de escolha do PR torna-se exponencialmente lata.
O poder de nomeação do Primeiro-Ministro não está necessariamente transformado num acto de homologação dos resultados eleitorais: depende desses resultados, expressão, por seu turno, da conjuntura política.
1.1. Os restantes membros do Governo são propostos pelo PM e nomeados pelo PR.
Após este passo, ocorre a tomada de posse dos membros do Governo (art.º 186.º, números 1 e 2, da Constituição).
O Governo inicia funções; e os anteriores titulares são exonerados do cargo.
1.2. No entanto, o Governo nascente tem um estatuto debilitado: trata-se de um “Governo de gestão” (v. art. 186.º, n.º 5, da Constituição: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, (…) o Governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”).
O “passaporte” para que o Governo aceda à plenitude de funções é dado através da AR.
3. Existem três cenários que podem ocorrer, aquando da “Apreciação do programa do Governo” (art. 192.º da Constituição).
3.1. Note-se que o programa de Governo terá de ser apreciado pela AR (art. 192.º), mas não votado.
Portanto, a primeira possibilidade é a de haver uma mera apreciação do Programa de Governo.
Conforme foi frisado nos trabalhos preparatórios da Constituição de 1976, “o Governo não precisa de ter o apoio da maioria da Assembleia” (uma confiança “positiva”) - “Exige-se, sim, que não tenha contra ele” essa maioria.
3.2. Num 2.º cenário, poderá ser proposta uma moção de rejeição por parte de um grupo parlamentar (art.º 192.º, n.º 3, 2.ª parte, 180.º, n.º 2, alínea h)), embora careça de maioria qualificada de 116 Deputados como requisito de aprovação (art.º 192.º, n.º 4).
Se essa moção de rejeição for aprovada, o Governo é automaticamente demitido (art.º 195.º, n.º 1, alínea d)).
Portanto, como bem disse o Professor Marcelo Rebelo de Sousa no seu comentário semanal, para que PSD e CDS voltem a formar Governo é necessário que tornem a ganhar as eleições por maioria absoluta dos Deputados (isto é, por 116 ou mais Deputados); o que é um cenário muito pouco provável, na actual conjuntura política.
De outro modo, se PSD-CDS ganharem com maioria relativa, muito provavelmente terão a maioria da AR contra si (excepto o PDR); e, aqui, ou o PR arrisca a nomeação e que o Governo “não passe” na AR; ou o PR opta por outra solução governativa.
Se, como tudo indica, o chefe do Partido a nomear como Primeiro-Ministro for o líder do PS, tal solução pode passar por uma Coligação, à Esquerda (v. g., PCP ou outros Partidos, que garantam a maioria de 116 Deputados); ou porventura à Direita.
Porém, na eventualidade de uma Coligação com o PS à Direita, tal verosimilmente será apenas com os Grupos parlamentares do PSD ou do CDS (ou, eventualmente, do PDR).
Nota – Imagine-se o exemplo contrário, em que PSD e CDS concorriam separados, mas tinham um acordo pré-eleitoral.
Imagine-se agora que o PS ganhava as eleições, com 100 Deputados; seguido do PSD, com 99 e do CDS, com 20.
Com 119 Deputados somados (99+20), PSD ou CDS poderiam apresentar uma moção de rejeição do Programa de Governo. A moção, ao ser aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (= 116), implicaria a demissão imediata do Governo do PS à nascença (artigo 195.º, n.º 1, alínea d), da Constituição).
            

17 de setembro de 2015

Nos 50 anos do assassinato de Humberto Delgado

Para prender alguém não é preciso LEVAR CAL VIVA E ÁCIDO SULFÚRICO

Vítor Dias

no Avante  de 2015

No pas­sado dia 13 cum­priram-se pre­ci­sa­mente 50 anos sobre o as­sas­si­nato em Al­me­rines, em Es­panha e muito perto da fron­teira por­tu­guesa, do Ge­neral Hum­berto Del­gado e da sua se­cre­tária e com­pa­nheira Ara­jaryr Campos, per­pe­trado por uma bri­gada da PIDE com­posta por An­tónio Rosa Ca­saco, ins­pector, Er­nesto Lopes Ramos, su­bins­pector (que tinha es­ta­giado na CIA), Agos­tinho Ti­enza, chefe de bri­gada e Ca­si­miro Mon­teiro, também chefe de bri­gada, na sequência de uma ar­ma­dilha (bap­ti­zada «Ope­ração Ou­tono») fria, longa e pre­me­di­ta­da­mente mon­tada, em cuja con­cepção de­sem­pe­nhou um papel fun­da­mental Bar­bieri Car­doso, ins­pector su­pe­rior com o pe­louro das «in­for­ma­ções», e que, como é de toda a evi­dência, re­cebeu o aval de Sa­lazar e de ou­tros altos res­pon­sá­veis do fas­cismo.

E, pela parte dos co­mu­nistas por­tu­gueses, ne­nhuma dú­vida que a grande marca de água da evo­cação desta im­por­tante efe­mé­ride só pode e deve ser a me­re­cida ho­me­nagem ao co­ra­joso e des­te­mido com­ba­tente an­ti­fas­cista em que se tornou o Ge­neral Hum­berto Del­gado e a rei­te­rada con­de­nação do re­gime fas­cista que de­li­be­ra­da­mente o mandou matar, em mais uma des­ta­cada con­fir­mação do seu ca­rácter ter­ro­rista e san­gui­nário.

En­tre­tanto, não deve cons­ti­tuir sur­presa que, 50 anos de­pois, mesmo após o co­nhe­ci­mento das peças pro­ces­suais do jul­ga­mento (e da sua re­vol­tante e in­fame sen­tença) que de­correu em 1981 no Tri­bunal Mi­litar de Santa Clara e de de­zenas de obras e tra­ba­lhos jor­na­lís­ticos sobre este as­sunto per­sistam e so­bre­vivam dú­vidas, in­ter­ro­ga­ções e hi­pó­teses di­versas sobre certos as­pectos con­cretos do crime que a opi­nião pú­blica ten­derá na­tu­ral­mente a se­guir com o in­te­resse de quem acom­panha um ro­mance po­li­cial.

Entre ou­tras ra­zões e fac­tores, acon­tece assim, desde logo porque os di­recta e com­pro­va­da­mente im­pli­cados no crime se es­me­raram sempre em di­fe­rentes ver­sões do que re­al­mente ocorreu, no seu com­pre­en­sível in­te­resse em sa­cudir a água do seu ca­pote para o ca­pote de ou­tros par­ti­ci­pantes mas, sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, todos sempre que­rendo con­ve­ni­en­te­mente sus­tentar o ca­rácter aci­dental da morte de Del­gado e ilibar os mais altos res­pon­sá­veis da PIDE e Sa­lazar. E também porque, de modo algum si­milar, al­guns dos mais pró­ximos com­pa­nheiros de Del­gado nesta época e grandes ali­men­ta­dores das suas con­cep­ções aven­tu­reiras, qui­seram ra­pi­da­mente fazer es­quecer toda uma vasta do­cu­men­tação (cartas e mais cartas, planos «re­vo­lu­ci­o­ná­rios» e mais «planos «re­vo­lu­ci­o­ná­rios», etc., etc.) que não abona em nada o papel ob­jec­ti­va­mente ne­ga­tivo que de­sem­pe­nharam junto do Ge­neral, com es­pe­cial gra­vi­dade a partir de 1964 quando este se afasta da Frente Pa­trió­tica de Li­ber­tação Na­ci­onal, fica iso­lado dos prin­ci­pais sec­tores e per­so­na­li­dades an­ti­fas­cistas e in­tei­ra­mente nas mãos de ba­ju­la­dores e ar­ri­vistas, de pro­vo­ca­dores do mais va­riado tipo, ou seja, o quadro ideal para que a cha­mada «Ope­ração Ou­tono» pu­desse ser con­cre­ti­zada com êxito, a partir do papel cru­cial de­sem­pe­nhado pelo in­for­mador da PIDE Mário de Car­valho, re­si­dente em Itália, e que con­se­guiu chegar a re­pre­sen­tante pes­soal do Ge­neral e em quem este man­teve total con­fi­ança apesar de su­ces­sivos alertas e avisos de­sig­na­da­mente do PCP.

Neste sen­tido, o que mais im­por­tará não é saber se a pa­lavra «as­sas­si­nato» ou «li­qui­dação» foi ou não pro­fe­rida nas con­versas pré­vias entre Sa­lazar, Santos Jú­nior, Silva Pais e Bar­bieri Car­doso (tudo gente boa en­ten­de­dora para meia pa­lavra lhes bastar), se Del­gado foi morto a tiro ou por es­pan­ca­mento brutal (como a au­tópsia es­pa­nhola pa­rece ter in­di­cado) e tantas ou­tras ques­tões deste nível mas sim, ainda que em termos ne­ces­sa­ri­a­mente breves e mui­tís­simo in­com­pletos, in­sistir em dois as­pectos es­sen­ciais, a saber:

    1. A com­pleta fal­si­dade das te­o­rias que tendem a apre­sentar o as­sas­si­nato de Del­gado como um aci­dente cir­cuns­tan­cial im­pre­visto e não de­se­jado, já que o ob­jec­tivo seria a pura de­tenção e trans­porte para Por­tugal do Ge­neral, e bem assim a tese de que Sa­lazar seria alheio à fi­na­li­dade con­su­mada da des­lo­cação a Es­panha da bri­gada da PIDE. Entre muitos ou­tros ele­mentos, para se per­ceber esta con­ve­ni­ente fan­tasia basta lem­brar que Sa­lazar se reunia se­ma­nal­mente com Silva Pais, que a sim­ples prisão e jul­ga­mento em Por­tugal de Hum­berto Del­gado te­riam ob­vi­a­mente uma re­per­cussão in­ter­na­ci­onal que o fas­cismo teria todo o in­te­resse em evitar, que Sa­lazar não era pera doce a tratar de «erros» ou «des­lizes» de su­bor­di­nados (de­mitia mi­nis­tros por re­cados dados por mo­to­ristas) mas todos os di­rec­ta­mente im­pli­cados no crime foram de­pois pro­mo­vidos, para já não falar da es­colha para in­te­grar a bri­gada de Ca­si­miro Mon­teiro, um con­sa­grado pis­to­leiro e sá­dico fa­cí­nora com de­zenas de crimes de de­lito comum no ca­dastro até ao trans­porte para Es­panha de cal viva e ácido súl­fu­rico, que, como se sabe, são os ma­te­riais mais ade­quados à «sim­ples» prisão de uma pessoa.
        2. Ponto ca­pital é o da com­pre­ensão po­lí­tica do pro­cesso que con­duziu ao as­sas­si­nato do Ge­neral Del­gado e aqui, sem des­me­recer em nada as qua­li­dades e a co­ragem do Ge­neral (que até evo­luiu po­si­ti­va­mente na sua po­sição sobre a questão co­lo­nial), o que de ne­nhuma ma­neira se pode ig­norar, como con­tinua a ser per­sis­ten­te­mente feito (veja-se a este res­peito, no que toca ao PCP, as in­fe­lizes afir­ma­ções feitas no Pú­blico de do­mingo pas­sado pelo seu neto Fran­cisco Del­gado Rosa autor do livro Hum­berto Del­gado, a bi­o­grafia do Ge­neral Sem Medo), é que o êxito da ar­ma­dilha mon­tada pela PIDE foi muito fa­ci­li­tada pela im­pre­pa­ração po­lí­tica e mesmo in­ge­nui­dade do Ge­neral, pela sua re­dução da luta an­ti­fas­cista a um com­bate pes­soal entre ele e o di­tador Sa­lazar, pela sua im­pul­si­vi­dade e in­cons­tância, pelo seu so­be­rano des­prezo pela luta or­ga­ni­zada dentro do País e pela li­gação às massas, pela sua ob­cessão por «ac­ções es­pe­ciais», «putchs» mi­li­tares de re­corte e base in­cri­vel­mente fan­ta­si­osos, pela sua con­ti­nuada e rei­te­rada falta de vi­gi­lância em re­lação aos seus adu­la­dores e co­la­bo­ra­dores mais pró­ximos, pela in­crível fa­ci­li­dade com que dava por sé­rios planos de «golpes» como aquele pro­posto por Mário de Car­valho em que este re­cen­seava a dis­tri­buição ge­o­grá­fica de 4617 de­mo­cratas dis­po­ní­veis para se ba­terem de armas na mão, entre os quais 843 em Santa Comba Dão!.
          Apesar de todas as ca­lú­nias des­pe­jadas sobre os co­mu­nistas e o PCP (in­cluindo a res­peito da au­toria do crime, a ver­dade his­tó­rica é que o PCP foi um aliado leal do Ge­neral Hum­berto Del­gado, fez in­can­sá­veis es­forços du­rante o pro­cesso de cri­ação, vida e crise da FPLN para ga­rantir ao Ge­neral um papel de des­taque mas in­se­rido no tra­balho e res­pon­sa­bi­li­dades co­lec­tivas, agiu in­va­ri­a­vel­mente com fle­xi­bi­li­dade e es­pí­rito uni­tário num con­texto e em am­bi­entes de exílio muito con­vul­si­o­nados por in­vejas, in­trigas e pre­con­ceitos e ani­mo­si­dades contra o PCP, ad­vertiu-o re­pe­tidas e fra­cas­sadas vezes sobre os pro­vo­ca­dores e in­fil­trados como Mário de Car­valho que o cer­cavam e em­pur­raram para a morte.