17 de setembro de 2015

Nos 50 anos do assassinato de Humberto Delgado

Para prender alguém não é preciso LEVAR CAL VIVA E ÁCIDO SULFÚRICO

Vítor Dias

no Avante  de 2015

No pas­sado dia 13 cum­priram-se pre­ci­sa­mente 50 anos sobre o as­sas­si­nato em Al­me­rines, em Es­panha e muito perto da fron­teira por­tu­guesa, do Ge­neral Hum­berto Del­gado e da sua se­cre­tária e com­pa­nheira Ara­jaryr Campos, per­pe­trado por uma bri­gada da PIDE com­posta por An­tónio Rosa Ca­saco, ins­pector, Er­nesto Lopes Ramos, su­bins­pector (que tinha es­ta­giado na CIA), Agos­tinho Ti­enza, chefe de bri­gada e Ca­si­miro Mon­teiro, também chefe de bri­gada, na sequência de uma ar­ma­dilha (bap­ti­zada «Ope­ração Ou­tono») fria, longa e pre­me­di­ta­da­mente mon­tada, em cuja con­cepção de­sem­pe­nhou um papel fun­da­mental Bar­bieri Car­doso, ins­pector su­pe­rior com o pe­louro das «in­for­ma­ções», e que, como é de toda a evi­dência, re­cebeu o aval de Sa­lazar e de ou­tros altos res­pon­sá­veis do fas­cismo.

E, pela parte dos co­mu­nistas por­tu­gueses, ne­nhuma dú­vida que a grande marca de água da evo­cação desta im­por­tante efe­mé­ride só pode e deve ser a me­re­cida ho­me­nagem ao co­ra­joso e des­te­mido com­ba­tente an­ti­fas­cista em que se tornou o Ge­neral Hum­berto Del­gado e a rei­te­rada con­de­nação do re­gime fas­cista que de­li­be­ra­da­mente o mandou matar, em mais uma des­ta­cada con­fir­mação do seu ca­rácter ter­ro­rista e san­gui­nário.

En­tre­tanto, não deve cons­ti­tuir sur­presa que, 50 anos de­pois, mesmo após o co­nhe­ci­mento das peças pro­ces­suais do jul­ga­mento (e da sua re­vol­tante e in­fame sen­tença) que de­correu em 1981 no Tri­bunal Mi­litar de Santa Clara e de de­zenas de obras e tra­ba­lhos jor­na­lís­ticos sobre este as­sunto per­sistam e so­bre­vivam dú­vidas, in­ter­ro­ga­ções e hi­pó­teses di­versas sobre certos as­pectos con­cretos do crime que a opi­nião pú­blica ten­derá na­tu­ral­mente a se­guir com o in­te­resse de quem acom­panha um ro­mance po­li­cial.

Entre ou­tras ra­zões e fac­tores, acon­tece assim, desde logo porque os di­recta e com­pro­va­da­mente im­pli­cados no crime se es­me­raram sempre em di­fe­rentes ver­sões do que re­al­mente ocorreu, no seu com­pre­en­sível in­te­resse em sa­cudir a água do seu ca­pote para o ca­pote de ou­tros par­ti­ci­pantes mas, sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, todos sempre que­rendo con­ve­ni­en­te­mente sus­tentar o ca­rácter aci­dental da morte de Del­gado e ilibar os mais altos res­pon­sá­veis da PIDE e Sa­lazar. E também porque, de modo algum si­milar, al­guns dos mais pró­ximos com­pa­nheiros de Del­gado nesta época e grandes ali­men­ta­dores das suas con­cep­ções aven­tu­reiras, qui­seram ra­pi­da­mente fazer es­quecer toda uma vasta do­cu­men­tação (cartas e mais cartas, planos «re­vo­lu­ci­o­ná­rios» e mais «planos «re­vo­lu­ci­o­ná­rios», etc., etc.) que não abona em nada o papel ob­jec­ti­va­mente ne­ga­tivo que de­sem­pe­nharam junto do Ge­neral, com es­pe­cial gra­vi­dade a partir de 1964 quando este se afasta da Frente Pa­trió­tica de Li­ber­tação Na­ci­onal, fica iso­lado dos prin­ci­pais sec­tores e per­so­na­li­dades an­ti­fas­cistas e in­tei­ra­mente nas mãos de ba­ju­la­dores e ar­ri­vistas, de pro­vo­ca­dores do mais va­riado tipo, ou seja, o quadro ideal para que a cha­mada «Ope­ração Ou­tono» pu­desse ser con­cre­ti­zada com êxito, a partir do papel cru­cial de­sem­pe­nhado pelo in­for­mador da PIDE Mário de Car­valho, re­si­dente em Itália, e que con­se­guiu chegar a re­pre­sen­tante pes­soal do Ge­neral e em quem este man­teve total con­fi­ança apesar de su­ces­sivos alertas e avisos de­sig­na­da­mente do PCP.

Neste sen­tido, o que mais im­por­tará não é saber se a pa­lavra «as­sas­si­nato» ou «li­qui­dação» foi ou não pro­fe­rida nas con­versas pré­vias entre Sa­lazar, Santos Jú­nior, Silva Pais e Bar­bieri Car­doso (tudo gente boa en­ten­de­dora para meia pa­lavra lhes bastar), se Del­gado foi morto a tiro ou por es­pan­ca­mento brutal (como a au­tópsia es­pa­nhola pa­rece ter in­di­cado) e tantas ou­tras ques­tões deste nível mas sim, ainda que em termos ne­ces­sa­ri­a­mente breves e mui­tís­simo in­com­pletos, in­sistir em dois as­pectos es­sen­ciais, a saber:

    1. A com­pleta fal­si­dade das te­o­rias que tendem a apre­sentar o as­sas­si­nato de Del­gado como um aci­dente cir­cuns­tan­cial im­pre­visto e não de­se­jado, já que o ob­jec­tivo seria a pura de­tenção e trans­porte para Por­tugal do Ge­neral, e bem assim a tese de que Sa­lazar seria alheio à fi­na­li­dade con­su­mada da des­lo­cação a Es­panha da bri­gada da PIDE. Entre muitos ou­tros ele­mentos, para se per­ceber esta con­ve­ni­ente fan­tasia basta lem­brar que Sa­lazar se reunia se­ma­nal­mente com Silva Pais, que a sim­ples prisão e jul­ga­mento em Por­tugal de Hum­berto Del­gado te­riam ob­vi­a­mente uma re­per­cussão in­ter­na­ci­onal que o fas­cismo teria todo o in­te­resse em evitar, que Sa­lazar não era pera doce a tratar de «erros» ou «des­lizes» de su­bor­di­nados (de­mitia mi­nis­tros por re­cados dados por mo­to­ristas) mas todos os di­rec­ta­mente im­pli­cados no crime foram de­pois pro­mo­vidos, para já não falar da es­colha para in­te­grar a bri­gada de Ca­si­miro Mon­teiro, um con­sa­grado pis­to­leiro e sá­dico fa­cí­nora com de­zenas de crimes de de­lito comum no ca­dastro até ao trans­porte para Es­panha de cal viva e ácido súl­fu­rico, que, como se sabe, são os ma­te­riais mais ade­quados à «sim­ples» prisão de uma pessoa.
        2. Ponto ca­pital é o da com­pre­ensão po­lí­tica do pro­cesso que con­duziu ao as­sas­si­nato do Ge­neral Del­gado e aqui, sem des­me­recer em nada as qua­li­dades e a co­ragem do Ge­neral (que até evo­luiu po­si­ti­va­mente na sua po­sição sobre a questão co­lo­nial), o que de ne­nhuma ma­neira se pode ig­norar, como con­tinua a ser per­sis­ten­te­mente feito (veja-se a este res­peito, no que toca ao PCP, as in­fe­lizes afir­ma­ções feitas no Pú­blico de do­mingo pas­sado pelo seu neto Fran­cisco Del­gado Rosa autor do livro Hum­berto Del­gado, a bi­o­grafia do Ge­neral Sem Medo), é que o êxito da ar­ma­dilha mon­tada pela PIDE foi muito fa­ci­li­tada pela im­pre­pa­ração po­lí­tica e mesmo in­ge­nui­dade do Ge­neral, pela sua re­dução da luta an­ti­fas­cista a um com­bate pes­soal entre ele e o di­tador Sa­lazar, pela sua im­pul­si­vi­dade e in­cons­tância, pelo seu so­be­rano des­prezo pela luta or­ga­ni­zada dentro do País e pela li­gação às massas, pela sua ob­cessão por «ac­ções es­pe­ciais», «putchs» mi­li­tares de re­corte e base in­cri­vel­mente fan­ta­si­osos, pela sua con­ti­nuada e rei­te­rada falta de vi­gi­lância em re­lação aos seus adu­la­dores e co­la­bo­ra­dores mais pró­ximos, pela in­crível fa­ci­li­dade com que dava por sé­rios planos de «golpes» como aquele pro­posto por Mário de Car­valho em que este re­cen­seava a dis­tri­buição ge­o­grá­fica de 4617 de­mo­cratas dis­po­ní­veis para se ba­terem de armas na mão, entre os quais 843 em Santa Comba Dão!.
          Apesar de todas as ca­lú­nias des­pe­jadas sobre os co­mu­nistas e o PCP (in­cluindo a res­peito da au­toria do crime, a ver­dade his­tó­rica é que o PCP foi um aliado leal do Ge­neral Hum­berto Del­gado, fez in­can­sá­veis es­forços du­rante o pro­cesso de cri­ação, vida e crise da FPLN para ga­rantir ao Ge­neral um papel de des­taque mas in­se­rido no tra­balho e res­pon­sa­bi­li­dades co­lec­tivas, agiu in­va­ri­a­vel­mente com fle­xi­bi­li­dade e es­pí­rito uni­tário num con­texto e em am­bi­entes de exílio muito con­vul­si­o­nados por in­vejas, in­trigas e pre­con­ceitos e ani­mo­si­dades contra o PCP, ad­vertiu-o re­pe­tidas e fra­cas­sadas vezes sobre os pro­vo­ca­dores e in­fil­trados como Mário de Car­valho que o cer­cavam e em­pur­raram para a morte.

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