Artigo publicado na revista Manifesto nº 2 de Outubro de 2018
Vítor Dias
1. Se há empreendimento difícil e de incerto resultado, então seria este de tentar formular em que termos, em que condições e com que políticas se poderá prolongar para depois das eleições legislativas de Outubro de 2019 um esquema de cooperação entre forças arrumadas à esquerda no Parlamento que represente uma desejável actualização em termos progressistas da solução politica arduamente conquistada após os resultados eleitorais de 4 de Outubro de 2015.
Desde logo porque no ano que falta ainda podem acontecer muitas coisas e muitos sinais que estão sendo dados na colocação e relacionamento dos vários partidos podem atenuar-se ou tornar-se mais nítidos e, em ambos os casos, influirem nas perspectivas com que é legítimo olhar para o pós-Outubro de 2019.
Mas sobretudo porque creio honestamente ser pouco sensato e pouco razoável esperar que um cidadão, por mais politicamente informado que seja e mesmo que seja partidariamente comprometido, possa por si só atrever-se a formular a «possível» plataforma programática capaz de receber o acordo do PS, do PCP, do BE e do PEV.
Na verdade, por muito que a afirmação possa chocar algumas boas e bem intencionadas almas, as únicas entidades que o poderão fazer são naturalmente as direcções partidárias e, a meu ver, apenas depois de contados os votos e definida a correlação de forças que se expressar na composição do Parlamento.
2. A este respeito, importa não ter nenhuma dúvida de que, provavelmente até com uma significativa aceitação da opinião pública, no ano que falta e de forma poderosa na campanha eleitoral de 2019, os órgãos de comunicação social vão insistir até à exaustão e à monotonia junto das forças políticas para que antecipadamente clarifiquem quais são os termos em que consideram poder vir a entender-se.
Acontece porém que é preciso melhorar a justa compreensão de que, sem prejuizo de uma atitude construtiva e empenhada em soluções pós-eleitorais de entendimento multipartidário à esquerda, as campanhas eleitorais não são nem podem ser em rigor um território para negociações feitas entre partidos e tendo como veiculos os títulos de imprensa ou as afirmações em comícios.
Antes são e só podem ser o território priviligiado para a afirmação e conquista de apoio popular para as suas próprias posições ou propostas, incluindo naturalmente o que isso signifique de diferenciação activa e firme em relação a outras propostas.
Com estas limitações e nestas circunstâncias, assim possa o leitor compreender que quem é convocado para opinar sobre o pós-Outubro de 2019, em vez de se afogar em conjecturas e palpites sobre a dimensão e o conteúdo de cedências recíprocas entre as partes, se concentre antes em clarificar quais são, a seu ver, as opções programáticas que melhor correspondem às necessidades e desafios que o país enfrenta.
3. Antes disso, importa clarificar que as opções programáticas que a seguir se formulem são inseparáveis de um juizo e de um balanço críticos do ocorrido nos últimos três anos assentes em três observações fundamentais:
- a primeira é que a solução política vigente na nova fase da vida nacional teve enormes vantagens por comparação com permanência de um governo PSD-CDS e da desastrosa e cruel política que empobreceu Portugal e os portugueses durante quatro anos e deixou profundas feridas no tecido social e económico;
- a segunda é que essa solução política garantiu, e só ela podia garantir, numerosas medidas de reparação dos agressivos golpes e da insensibidade social do PAF que, ainda que insuficientes e por vezes limitadas, constituem um património a valorizar e a não esquecer;
- a terceira é que, por força de conhecidas orientações e vinculações do PS, a referida solução política não afrontou, como seria necessário, problemas de carácter estrutural como sejam designadamente as imposições e constrangimentos (só tem direito a usar esta palavra os que a eles se opuseram e não os que os apoiaram) derivados da actual fase da integração europeia, do inaudito peso da dívida e dos seus encargos e da legislação e relações de trabalho.
4. No que toca à anterior segunda observação, porque a memória é curta e a pressão para o superficial e efémero é enorme, é preciso relembrar que foi no quadro da actual solução política e por influência decisiva dos parceiros de acordo com o PS, designadamente com um destacado papel do PCP, que se verificaram medidas positivas como:
- no plano da Segurança Social, o aumento geral e extraordinário de reformas em 2017 e 2018, a valorização do abono de família, a protecção social das pessoas com deficiência, a eliminação dos cortes no subsídio de desemprego;
- no plano da educação, a gratuitidade dos manuais escolares para o 1.º e 2.º ciclos na perspectiva da sua universalização;
-no plano laboral, a reposição dos 4 feriados roubados, do subsídio de Natal para trabalhadores da Administração Pública, reformados e pensionistas, do horário das 35 horas de trabalho na Administração Pública e dos complementos de reforma de trabalhadores de empresas do Sector Empresarial do Estado, o descongelamento da progressão nas carreiras na Administração Pública, pese embora a resistência do PS na correspondente valorização salarial, o aumento do Salário Mínimo Nacional, ainda que insuficiente;
-no plano fiscal, o desagravamento sobre os rendimentos do trabalho com a eliminação da sobretaxa e a criação de dois novos escalões e o alargamento do limite do mínimo de existência no IRS, a tributação do grande capital com o aumento do valor da derrama estadual para empresas com mais de 35 milhões de euros de lucro, a introdução de um adicional ao imposto sobre o património imobiliário de elevado valor;
- no plano do apoio às actividades económicas, das MPME com a redução do IVA na restauração para 13% e a redução do valor mínimo do PEC, com vista à sua eliminação, e da pequena e média agricultura e pesca com o apoio nos combustíveis;
- e ainda a reversão dos processos de privatização do Metro, da Carris e da STCP que, a exemplo de outras medidas projectadas pelo Governo PSD/CDS, foi possível impedir.
5. A simples leitura desta lista não exaustiva basta para demonstrar que aqueles que proclamam que o PS meteu o PCP e o BE no bolso, os anestesiou ou condenou à irrelevância ou são movidos por pura má-fé ou estão afogados num espírito de classe e num estatuto social que os impede de ver quanto estas medidas trouxeram palpáveis vantagens e benefícios para a vida de grande parte da população.
E falando de mistificações interesseiras, talvez seja de acrescentar que estas medidas positivas por outro lado em nada impediram um importante processo de lutas sociais e reivindicativas incidindo sobre insuficiências da acção governamental e injustos interesses patronais, em termos de um vigor e diversidade que atestam que o movimento sindical unitário assegurou com èxito a tarefa maior de defender e conservar a sua autonomia.de orientação e intervenção.
6. A nosso ver, uma atenta e lúcida consideração dos problemas e necessidades do país e uma firme e estruturada vontade de lhes dar solução exigem imperativamente uma política de;
- firme combate às imposições gravosas para o país da União Europeia, da política do Euro e do garrote do Tratado Orçamental e de recuparação de instrumentos de soberania nacional;
- defesa da reestruturação da dívida e diminuição dos seus encargos, sem a qual ficará duradouramente comprometido o nível de investimento público de que Portugal carece; ( assinale-se a este respeito que até uma personalidade com Manuela Ferreira Leite declarava em Junho deste ano que seria inconcebível e insuportável que o país estivesse durante 30 anos a ter saldos primários ostensivamente elevados que seriam consumidos para reduzir a dívida para os 60% do PIB).
- revogação das normas mais gravosas do Código Laboral introduzidas pelo anteriores governos do PS e do PSD-CDScomo escopo central do programa da troika, nomeadamente no que toca a eliminação da caducidade da contratação colectiva, bancos de horas, valores de indemnização por despedimento, reposição do tratamento mais favorável ao trabalhador e do período experimental de 90 dias, etc.;
- redução significativa dos trágicos níveis de precariedade laboral na sociedade portuguesa que constituem não apenas um enorme flagelo social mas também um grave mutilação da democracia na medida em que esta situação acarreta extraordinárias limitações reais ao exercício de direitos sindicais, com destaque para o direito à greve;
- valorização do trabalho e dos trabalhadores, designadamente com o aumento geral dos salários e do Salário Mínimo Nacional em termos superiores aos que têm sido feitos e bem assim do avanço para as 35 horas no sector privado;
- aumento do investimento público e do financiamento dos serviços públicos e funções sociais do Estado, incluindo uma efectiva, ainda que faseada, contagem do tempo de serviço dos trabalhadores da função pública referente ao tempo em que as progressões na carreira estiveram congeladas;
. reforço da capacidade de intervenção do Estado nos sectores estratégicos da economia nacional e reversão das Parcerias Público-Privadas;
- reforço da protecção e apoio sociais, prosseguindo o aumento extraordinário das pensões, garantindo a universalização do abono de família, dando cumprimento ao compromisso da reforma sem penalizações para trabalhadores com 40 ou mais anos de descontos e diversificação das fontes de financiamento da segurança social, designadamente estabelecendo contribuições de empresas em função do valor acrescentado;
- resposta de emergência social aos problemas da habitação, em especial nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, com a revogação e substituição da «Lei dos Despejos» do Governo PSD-CDS e de Assunção Cristas;
- reforma fiscal tributando o património mobiliário, os lucros e dividendos, desagravando os rendimentos do trabalho, repondo o IVA na electricidade e no gás nos 6% e revendo injustificados benefícios fiscais concedidos aos grandes grupos económicos;
- defesa e refotço do aparelho produtivo com vista ao aumento da produção nacional;
- apoio aos micro, pequenos e médios empresários, designadamente com a eliminação do Pagamento Especial por Conta e a redução dos seus custos com energia e com o desenvolvimento do mercado interno;
- apoio efectivo às artes, à cultura e ao património, nomeadamente conferindo-lhes uma dotação orçamental correspondente a 1% do PIB;
- apoio à agricultura familiar e ao mundo rural, de concretização atempada das medidas para responder às consequências dos incêndios e no quadro de um firme empenho em atenuar as graves assimetrias entre as diversas regiões do país.
- urgente planificação de um processo de renovação e modernização da ferrovia nacional.
Depois deste longo (ou curto ? ) enunciado, talvez valha a pena salientar que são estas ou outras propostas políticas que devem estar no centro de um debate voltado para o pós-Outubro de 2019. Com efeito, não seria uma grande contribuição para esse debate democrático que, em caso de impasses ou fracassos, alguém artificiosamente planasse sobre as políticas e as divergências em torno delas e fugisse a tomar posição sobre elas para depois poder olimpicamente sentenciar sobre as iguais responsabilidades de todos os partidos envolvidos.
7. À distância de um ano das próximas eleições legislativas dois factos devem ser tidos em conta porque apontam respectivamente em determinada direcção sobre o provável desfecho eleitoral e podem ter influência sobre os cenários pós-eleitorais.
O primeiro consiste em, sem certezas, a avaliar pela cotação do PSD em sondagens (os piores resultados em 42 anos !), ser razoável prever que nas próximas eleições não haverá o perigo de o PSD, sózinho ou aliado ao CDS, ter uma maioria relativa ou absoluta nas eleições, previsão que só pode ser agravada em alguma medida pelo surgimento do novo partido de Santana Lopes.
O segundo consiste no facto muito relevante e inapagável de que um elemento central da campanha interna de Rui Rio no PSD foi o propósito de, não vencendo o PSD as eleições, este partido se dispor a apoiar ou viabilizar um governo do PS em nome do «sagrado» objectivo de «libertar» o PS da necessidade de acordos à sua esquerda .
É certo que até pode acontecer que, a partir de determinada altura, Rui Rio coloque antes a tónica no PSD como «partido que disputa a vitória» e que constitui uma «sólida alternativa» ao PS mas isso jamais poderá apagar a revelação que fez na quadro de disputa da liderança do PSD. E, por outro lado, também o PS pode dizer da boca para fora que o seu projecto é de manutenção de alianças à esquerda mas intimamente ver com imenso agrado a margem de manobra que a posição de Rui Rio lhe oferece.
Neste quadro, não se estranhará que sustente que, face a perigos que já são desejados por alguns (governo minoritário do PS sustentado por um «bloco central» parlamentar ou maioria absoluta do PS), a necessária opção de voto é genericamente por aqueles que desejam impedir o PS de voltar a um regaço à direita, designadamente aquela força que reputo dispor de uma maior audácia, consistência e coerência programática, de uma qualificada intervenção institucional e no movimento de lutas, a par de uma insubstituivel radicação social.
8. Se não fosse a crucial importância do que estará em jogo, poder-se-ia talvez escrever com algum deleite intelectual que nos esperam tempos interessantes. Por mim, prefiro dizer que nos esperam tempos muitíssimos exigentes a pedirem muita confiança mas sobretudo enorme determinação, uma linha político-eleitoral dotada de certa sofisticação e muito rigor e que seja portadora de esperança, uma aposta muito grande no crescimento do espírito crítico dos eleitores e um discurso sensível e humanizado centrado nos grandes e verdadeiros problemas dos portugueses e de Portugal.
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