(Vítor Dias em «O Militante»
de Set- Out. de 2019)
Completam-se no próximo mês de
Outubro 50 anos sobre a penúltima farsa eleitoral organizada pela ditadura
fascista e que constituiu um relevante acontecimento no processo da
prolongada luta democrática pela
liberdade e contra a opressão, não apenas pela dinamismo, audácia, energia
criadora e grande combatividade demonstrada pelos comunistas e outros
democratas nesse preciso período mas sobretudo porque teve decisivas projecções para os quase cinco anos que se
seguiram até à histórica madrugada de 25 de Abril de 1974.
O período que vai de Setembro de 1968 a Outubro de 1969
caracterizou-se por uma intensíssima actividade política, por muitas dezenas de
importantes episódios, por vivas polémicas e debates dentro do próprio campo
democrático, tudo matéria que, apesar do seu inegável interesse, não é possível
referir detalhadamente num texto desta natureza. Compreenda-se pois que, de
forma sempre discutível, prefiramos dar aqui relevo a algumas questões que, a
nosso ver, iluminam melhor o essencial do que esteve em causa e se passou
naquela época já tão distante. Assim:
1.Realizando-se cerca de um ano após a tomada de posse
de Marcelo Caetano, na sequência da incapacitação de Salazar, e do consequente
arranque daquilo a que o PCP chamaria acertadamente de «demagogia
liberalizante» e outros chamaram erroneamente de «primavera marcelista», a
farsa eleitoral para as legislativas desse ano encerrava em si mesma para as
forças democráticas um desafio crucial.
Desafio que, em termos gerais,
consistia em ou escolher o caminho de um combate firme e determinado de
oposição frontal ao regime (às suas estruturas fundamentais, à sua natureza de
classe e à devastadora guerra colonial que prosseguia há oito anos) e de
conquistar novos espaços de intervenção ou fazer uma campanha eleitoral
naturalmente recheada de críticas ao regime (com muita moderação no que toca ao
tema da guerra colonial) mas em termos que não contrariassem benévolas expectativas face às alterações
cosméticas desencadeadas pelo novo Presidente do Conselho e não comprometessem
os seus anseios de obter uma legalização preferencial sustentada na
marginalização e isolamento político da força mais consequente da resistência
antifascista, o PCP. Como aliás se inferia claramente do manifesto “À Nação”
subscrito por membros da ASP (Acção Socialista Portuguesa) no princípio de
1969.
Por outras palavras, na
orientação, comportamentos e atitudes das diversas componentes da oposição
democrática, mais do que as divergências concretas que publicamente afirmavam
(embora várias delas tivessem grande significado e importância), o que pesava
era sobretudo a análise de fundo que faziam do momento político nacional
inaugurado com o “marcelismo” .
2. Na verdade, enquanto Mário Soares e os outros membros
da ASP alimentavam sérias ilusões sobre os reais objectivos do «marcelismo» (a
ponto de se realizarem contactos entre M. Soares e Melo e Castro, o novo
presidente da União Nacional (em Fevereiro de 1970 rebaptizada de ANP – Acção
Nacional Popular) e enquanto opinadores esquerdistas nele viam e continuaram
muito tempo a ver « um ensaio de transição controlada para as democracias
parlamentares», já o PCP, em comunicado de Setembro de 1968 (depois
desenvolvido em numerosas tomadas de posição), sublinhava que « o que desde
já o distingue [ao governo de Marcelo Caetano] é continuar o
salazarismo a coberto de uma demagogia
liberalizante». O PCP alertava
também que «o fim do fascismo não pode resultar da acção daqueles mesmos que
o querem salvar e que só o povo português, só a unidade e organização dos
democratas, só a luta das massas populares podem conduzir finalmente ao
derrubamento da ditadura e à instauração de um regime democrático».
Entretanto, a nosso ver, o maior rasgo da posição assumida pelo PCP não esteve tanto nestas caracterizações mas sim no facto de, ao mesmo tempo, ter tido a sensibilidade e a sabedoria políticas de salientar que «para uma justa apreciação da situação não se deve perder de vista a natureza de classe do novo governo nem se deve perder de vista as dificuldades actuais do regime que abrem novas perspectivas ao movimento democrático nacional». E ter destacado vigorosa e lucidamente «a necessidade de aproveitar audaciosamente a nova situação para quebrar o imobilismo político, exigir o cumprimento de quaisquer promessas demagógicas do governo, imprimir um novo curso à vida política e a luta popular de massas» em torno de objectivos próprios que o comunicado naturalmente enunciava.
E, de facto, representando um
estimulo decisivo para a própria acção explicitamente política, a primeira e
mais forte resposta à operação demagógica do novo governo veio de poderosas
lutas sociais nas fábricas e em outras empresas, com a classe operária e outros
trabalhadores a lutarem corajosamente pelas suas reivindicações concretas de
carácter económico e social e bem assim, mas com especial ressonância nacional,
da chamada «crise académica» de Coimbra, em Abril-Maio desse ano e que
constituiu uma extraordinária afirmação de combatividade estudantil.
3. Apesar de o espectro da divisão entre sectores
democráticos pairar praticamente desde o inicio de 1969, graças ao apego dos
comunistas e de outros democratas de esquerda aos valores da unidade, ainda foi
possível aprovar, em 26 de Junho numa reunião em S. Pedro de Muel em que
participaram cerca de 100 delegados vindos de todo o país, uma Plataforma programática que, ainda com
uma formulação moderada sobre a questão
colonial (aí ainda se falava em «guerras do Ultramar»), correspondia em linhas
gerais a objectivos justos do movimento democrático.
No entanto, pouco tempo
depois, a divisão consumou-se sem apelo nem agravo quando Mário Soares e os
membros da ASP declararam unilateralmente encerradas as negociações com as CDE
de Lisboa, Porto e Braga (no Porto chamava-se CDP – Comissão Democrática do
Porto) e anunciaram o propósito de apresentarem candidaturas próprias, sob a
sigla CEUD, naqueles distritos. Sem prejuízo do que se salienta no ponto 1.
deste artigo, de forma pública as divergências centravam-se em que os
democratas da ASP reclamavam a paridade na lista de candidatos (ou seja metade
para eles e outra metade para as restantes correntes (que eram várias dado que,
por exemplo na CDE de Lisboa e em alguns outros distritos participavam também,
ao lado dos comunistas o grupo de companheiros e amigos de Jorge Sampaio,
católicos progressistas e personalidades com os Prof. Pereira de Moura e
Lindley Cintra não classificáveis em nenhum grupo. E centravam-se também, e
sobretudo, na firme oposição de Mario Soares e dos seus companheiros ao tipo de
funcionamento democrático adoptado pelas CDE´s, com comissões de base
geográficas e sócio-profissionais reunidas em comissões distritais a quem era
atribuído um importante papel na aprovação das listas de candidatos.
Dito por palavras mais
directas, o que os democratas já reunidos na CEUD pretendiam era manter a
intervenção eleitoral oposicionista nos mesmos moldes que, em determinadas
conjunturas históricas anteriores (em 1965, nos 12 candidatos por Lisboa, 10
eram do grupo de Mário Soares !) tinham conseguido impor, ou seja, um grupo de personalidades reunia-se,
mormente no escritório de algum advogado, escreviam um manifesto e elaboravam e
decidiam sobre uma lista de candidatos, cabendo a todos os outros democratas
serem «carregadores de pianos» sem nenhuma palavra a dizer sobre os candidatos
e a orientação da campanha.
4. A respeito do tipo de estruturação das CDE, ao longo
dos anos, quer personalidades do «grupo» de Jorge Sampaio quer outras que
vieram mais tarde a fundar o PRP
chamaram a si o mérito político da sua organização democrática interna (comissões de base, comissões distritais e
seus poderes, etc.) mas tal reivindicação não tem o mais pequeno fundamento.
Com efeito, segundo o testemunho absolutamente credível do médico comunista Souto Teixeira (em entrevista à “Seara Nova” que não veio a ser publicada), ainda no Inverno de 1968 e em Lisboa, o PCP criou um grupo de trabalho encarregado de preparar as “eleições” de 1969 e que foi acompanhado pelo então funcionário clandestino Pedro Ramos de Almeida (devendo algo similar ter acontecido pelo menos no Porto e Setúbal). Esse grupo de trabalho era constituído por José Tengarrinha, José Gouveia,, Souto Teixeira e José Lopes de Almeida e a divisão de tarefas a que procedeu, para além do estabelecimento de contactos políticos, incluía precisamente a criação e dinamização de comissões de freguesia e concelhias em diversas localidades do distrito, trabalho que foi realizado com pleno êxito.
Com efeito, segundo o testemunho absolutamente credível do médico comunista Souto Teixeira (em entrevista à “Seara Nova” que não veio a ser publicada), ainda no Inverno de 1968 e em Lisboa, o PCP criou um grupo de trabalho encarregado de preparar as “eleições” de 1969 e que foi acompanhado pelo então funcionário clandestino Pedro Ramos de Almeida (devendo algo similar ter acontecido pelo menos no Porto e Setúbal). Esse grupo de trabalho era constituído por José Tengarrinha, José Gouveia,, Souto Teixeira e José Lopes de Almeida e a divisão de tarefas a que procedeu, para além do estabelecimento de contactos políticos, incluía precisamente a criação e dinamização de comissões de freguesia e concelhias em diversas localidades do distrito, trabalho que foi realizado com pleno êxito.
Terminando estas referências
às divergências sobre a forma de organização da intervenção democrática na
farsa eleitoral, diga-se entretanto que não sendo acidentais ou de pouco
significado estas divergências dos que se vieram agrupar nas três CEUD, a
verdade é que, nos restantes distritos em que as CDE concorreram , diversos
membros ou apoiantes da ASP foram candidatos e
conviveram sem qualquer ruptura com a estruturação democrática, com
os critérios de formação de listas e com
as críticas frontais à guerra colonial que não suportaram compartilhar em
Lisboa, Porto e Braga !.
5.
Se é verdade que
bastava a existência de uma polícia política e de presos políticos (que não
terminariam no fim da campanha eleitoral) para, só por si, se poder concluir
que não podia haver eleições livres em ditadura, também é verdade que uma vasta
panóplia de outros instrumentos limitativos favorecia a burla eleitoral.
Nesse sentido, basta referir brevemente que, excepção feita
a pequenos retoques na lei eleitoral, o novo governo do ex-comissário Nacional
da Mocidade Portuguesa, ex-ministro da Presidência e destacado doutrinador do
corporativismo manteve todas orientações e comportamentos antidemocráticos do
passado. A PIDE mudou para DGS mas nem por isso deixou de prender, provocar,
reprimir e intimidar (entre tantos outros exemplo, lembre-se a dissolução da
reunião no Palácio do Marquês de Fronteira em Junho e o assalto por trinta
rufias à sede da CDE de Lisboa no Campo Pequeno). A Censura mudou para Exame
Prévio mas nem por isso deixou de impedir a livre circulação de ideias e o
acesso da oposição à rádio e
à televisão. E a União Nacional continuou a ser o partido único com as correspondentes vantagens e benefícios face a uma oposição que só intermitentemente se podia organizar a actuar à luz do dia.
Na verdade, quem tenha chegado à vida activa já depois do 25 de Abril dificilmente poderá imaginar na sua plenitude e emaranhado as dificuldades que o regime colocava à oposição. A título meramente indicativo, talvez baste lembrar que o ministério do Interior conservava o direito de recusar candidatos da oposição (como aconteceu com Humberto Soeiro e Victor de Sá em Braga, Alberto Costa em Leiria, Blasco Hugo Fernandes em Santarém e Firmino Martins em Lisboa).A rádio e a televisão estavam vedadas à oposição e o noticiário na imprensa da campanha continuava a ir à censura. O recenseamento era muito limitado (havia apenas 1.784.000 recenseados) e a inscrição nele podia ser administrativamente recusada. A fiscalização democrática da contagem de votos não estava plenamente assegurada em todas as assembleias, dando origem a vastas «chapeladas» em favor da UN. Ao contrário do que acontece em democracia, nas secções de voto não havia boletins para entregar aos cidadãos nem portanto cabines de voto, sendo os boletins da UN distribuídos pela polícia e tendo a oposição de os passar de mão em mão. Além disso, os boletins da oposição era algo translúcidos o que, a olho nu, os diferenciava dos da UN. E, por fim, acrescente-se ainda que evidentemente não havia representação proporcional pelo que, ficando fraudulentamente a UN «à frente», conquistaria sempre todos os lugares na Assembleia Nacional.
à televisão. E a União Nacional continuou a ser o partido único com as correspondentes vantagens e benefícios face a uma oposição que só intermitentemente se podia organizar a actuar à luz do dia.
Na verdade, quem tenha chegado à vida activa já depois do 25 de Abril dificilmente poderá imaginar na sua plenitude e emaranhado as dificuldades que o regime colocava à oposição. A título meramente indicativo, talvez baste lembrar que o ministério do Interior conservava o direito de recusar candidatos da oposição (como aconteceu com Humberto Soeiro e Victor de Sá em Braga, Alberto Costa em Leiria, Blasco Hugo Fernandes em Santarém e Firmino Martins em Lisboa).A rádio e a televisão estavam vedadas à oposição e o noticiário na imprensa da campanha continuava a ir à censura. O recenseamento era muito limitado (havia apenas 1.784.000 recenseados) e a inscrição nele podia ser administrativamente recusada. A fiscalização democrática da contagem de votos não estava plenamente assegurada em todas as assembleias, dando origem a vastas «chapeladas» em favor da UN. Ao contrário do que acontece em democracia, nas secções de voto não havia boletins para entregar aos cidadãos nem portanto cabines de voto, sendo os boletins da UN distribuídos pela polícia e tendo a oposição de os passar de mão em mão. Além disso, os boletins da oposição era algo translúcidos o que, a olho nu, os diferenciava dos da UN. E, por fim, acrescente-se ainda que evidentemente não havia representação proporcional pelo que, ficando fraudulentamente a UN «à frente», conquistaria sempre todos os lugares na Assembleia Nacional.
6. A campanha das
CDE em todos os distritos do país, por
motivos vários apenas com a excepção de Bragança, Portalegre e Ponta Delgada,
traduziu-se numa notável acção de esclarecimento em torno dos grandes problemas
nacionais e uma massiva jornada de luta contra o fascismo que foi assegurada
pela dedicação e coragem de muitos milhares de democratas, com significativa
participação de mulheres e jovens.
Nem as proibições de reuniões
e conferências de imprensa, nem as agressões e prisões de democratas que
distribuíam propaganda nem a presença provocatória das autoridades e da polícia
nas sessões, nem as intimidações e ameaças de represálias a quem alugasse salas
à oposição ou imprimisse os seus documentos conseguiram evitar uma denúncia
frontal dos verdadeiros problemas do país e das responsabilidades do fascismo
no seu agravamento. Em comícios, sessões, manifestos e comunicados, a par da
reclamação da liberdade de imprensa, de reunião, de formação de partidos e de
sindicatos não tutelados pelo governo e de exigência de libertação dos presos
políticos ganharam um novo e central central relevo as reivindicações mais
sentidas pelas massas populares em torno do aumento dos salários e do direito à
greve, do custo de vida e, facto saliente, do fim da guerra colonial com a
explicita menção à necessidade de negociações com os movimentos de libertação
de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com vista à independência dos seus povos.
7.
Apesar do
dramatizado apelo ao voto na UN feito
por Marcelo Caetano nas vésperas das “eleições” através da Emissora Nacional e
da RTP, os números oficiais vieram a revelar um abstenção a nível nacional de
35% (mas que atingiu cerca de 50% em Lisboa e Setúbal), Uma vez que a oposição
decidiu ir às urnas, o que tem de ser considerado e avaliado no quadro do ambiente político
daquela época, as autoridades “generosamente” atribuíram às CDE 10,29% e às
três CEUD 1,51%.
Pelo seu significado,
refira-se que nem a forma como a campanha decorreu nem os seus resultados
geraram qualquer, ainda que ténue, rectificação da orientação da ASP/CEUD (isso
só se verificaria para as “eleições de 1973). Na verdade, em comentário aos
resultados oficiais, a CEUD vangloriava-se de ter «firmado uma posição
(…) porque, repudiando o aventureirismo político representa a viabilidade de
uma solução pacífica do problema português» e porque «ultrapassando as
fórmulas vagas de uma oposição sistemática, rasga perspectivas válidas de um
alternativa».
8. Os resultados
oficiais não representaram de facto nenhum vitória do fascismo e da demagogia
marcelista pois toda a campanha democrática conseguiu aumentar o isolamento do
regime, desmascarar as suas operações de cosmética,favorecer uma maior
consciencialização da necessidade do seu derrubamento e criar as bases, em
determinação, em novos quadros e em uma agora determinante influência da
orientação do PCP no quadro da oposição legal ou semi-legal, para as lutas
seguintes que abriram caminho à conquista da liberdade, da democracia, da paz e
do progresso social.
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