30 anos de uma
Constituição com futuro
Vitor Dias no Avante ! de
1.3.2006
No
próximo dia 2 de Abril completam-se trinta anos sobre a aprovação
e imediata promulgação da Constituição da República Portuguesa
que
representaram – e representam ainda hoje – um marco de
extraordinário significado político e de grande alcance histórico
no processo da revolução do 25 de Abril.
Com a
conclusão dos trabalhos da Assembleia Constituinte eleita em 25 de
Abril de 1975 e a aprovação de uma nova operou-se a passagem da
situação
democrática criada pelo levantamento militar e
pela
iniciativa e luta populares à instauração de um regime
democrático escolhido pelo próprio povo, cumprindo-se assim um
compromisso fundamental inscrito no Programa do Movimento das Forças
Armadas e também – importa recordá-lo – um objectivo essencial
do Programa do PCP aprovado em 1965 e confirmado nas adaptações
conjunturais que foram introduzidas no VII Congresso
Extraordinário
do PCP realizado em Outubro de 1974. Ocorrendo
apenas quatro meses após os acontecimentos do 25 de Novembrode 1975,
a aprovação da Constituição
representou também um inestimável
factor de estabilização da situação política e da vida
democrática do país, assim contrariando as forças e interesses que
acalentavam o desejo de levar mais longe uma dinâmica revanchista e
a esperança de que uma substituição do General Costa Gomes na
Presidência da República permitisse fazer retroceder e anular o
curso
progressista imprimido ao processo de elaboração da
Constituição.
Mas a principal grandeza e importância da Constituição aprovada há
30 anos está no facto, carregado de
significado e consequências,
de com ela o país ter ficado dotado de uma Lei Fundamental que,
embora com base num
compromisso multipartidário, incorporou e
consagrou, de forma clara e indiscutível, a ruptura
revolucionária com a
ditadura fascista e o vasto e rico
património de valores,
objectivos, transformações, conquistas e
mudanças trazidas à sociedade portuguesa pela
revolução democrática.
Como será
hoje ainda mais evidente, esta distintiva natureza e este marcante
conteúdo da Constituição de 1976 não tiveram origem nem na
mera relação de forças na Assembleia Constituinte nem no
exclusivo mérito dos deputados constituintes. Antes só podem ser
explicados pelos avanços e conquistas obtidos, muitas vezes antes
da sua consagração legal, nos anos de 1974 e 1975 através da
luta dos
trabalhadores e de outras camadas e grupos sociais e da
aliança Povo-MFA, bem como pela existência à época de um
muito
profundo enraizamento social dos ideais e valores da revolução de
Abril que condicionou em grande medida diversas forças políticas
obrigando-as a dissimular transitoriamente muitos dos seus reais
objectivos e propósitos.
E é
também por isso que se pode dizer, com inteiro rigor
e cristalina
verdade, que a Constituição da República aprovada em 1976
constitui ela própria uma fulcral conquista do 25 de Abril e
representa, na história nacional, um indelével momento de
pujante afirmação damelhores esperanças e aspirações e
mais generosos sonhos do povo português.
Sete-revisões-sete
Ao longo
dos últimos 30 anos, com maior ou menor intensidade, e exactamente
por ser «filha da revolução de Abril» e não por estar em
«oposição à revolução» como várias forças políticas
sustentaram, a Constituição da República não foi apenas motivo
de luta política ou de debate ideológico mas também e sobretudo
um alvo privilegiado da ofensiva das forças de direita e do
grande capital, quase sempre com uma significativa cumplicidade do
PS.
Se outros
elementos não existissem, bastaria referir o facto de,
desde a
sua aprovação, a Constituição de 1976 já ter sido sujeita a
sete processos de revisão (o que coloca certamente Portugal, a
nível europeu e mundial, como um dos países onde mais
repetidamente se altera a Lei Fundamental) para se perceber que
não terminou em 1976 nem está ainda terminado nos dias de hoje o
conflito de fundo entre as forças e interesses que não se
reconhecem nosvalores, na substância concreta e na
arquitecturaconstitucional originada na revolução democrática
e
as forças, como o PCP, que são fiéis àquele património e nele
vêem um importante instrumento e uma decisiva referência para a
construção de um futuro diferente e melhor.
Na verdade,
as sucessivas revisões da Constituição não são explicáveis
por qualquer obsessão perfeccionista ou volúpia actualizadora
mas pelo propósito comum à direita e ao PS de, passo a passo, ir
mutilando o texto original da Constituição, retirando
protecção constitucional a algumas importantes conquistas de
Abril, reabilitando retroactivamente as políticas que, em
aberta divergência com a Constituição, realizaram e
realizam
nos governos, abrindo as portas para mais graves avançosda
política de direita.
N verdade,
o que verdadeiramente marca as sucessivas revisões da Constituição
(umas ordinárias, outras extraordinárias) não são
melhoramentos pontuais
positivos (que é sempre possível fazer e
para os quais o PCP, uma vez desencadeados os processos de
revisão, muitas vezes qualificadamente contribuiu) mas sim
importantes alterações
de fundo em consonância com os
interesses e objectivos da
política de direita. Assim, é o caso
da revisão de 1982 que procedeu à reconfiguração dos órgãos de
poder ditada pelo propósito do PS, do PSD e do CDS de extinguir o
Conselho da Revolução e a intervenção institucionalizada do
MFA na vida política. É o caso da revisão de 1989 cujo
objectivo fundamental foi o de eliminar a protecção
constitucional da Reforma Agrária e das nacionalizações
(abrindo caminho para o nefasto processo de privatizações que o
país tem conhecido e sofrido). É o caso da revisão de 1992
que visou proteger e autorizar as graves mutilações da soberania
nacional induzidas pela vinculação ao Tratado de Maastricht. É
o caso da revisão de 1997 que saldou pela consagração da
exigência de um referendo obrigatório sobre a
institucionalização das
regiões administrativas (que entretanto
continuam inscritas na
Constituição como uma realidade
integrante do poder local) e pela perversa abertura dada a
negativas alterações nas leis eleitorais, quer para as
autarquias locais quer para a Assembleia da República. É o caso
da revisão de
2001 destinada a permitir a adesão ao Tribunal
Penal Internacional e a autorizar as buscas policiais nocturnas. É
o
caso da revisão de 2004 que, com o proselitismo próprio dos
subservientes, cuidou de submeter antecipadamente a
nossa
Constituição a uma «Constituição europeia» que se
não está morta está mal enterrada. E, por fim, apesar de tudo o
menos grave, e o caso da revisão de 2005 em que, após piruetas e
trapalhadas sem fim a propósito do regime do referendo sobre
temas europeus, PS e PSD acabaram por consagrar uma solução
dúbia e insatisfatória, recusando pela quarta vez a proposta do
PCP
de consagrar plenamente a possibilidade de referendos sobre
tratados
nesse âmbito.
Falsidades,
argumentos
de conveniência e outros truques
A
campanha
política e ideológica que há trinta
anos é movida contra a
Constituição não
se deteve nem amainou significativamente com a
frenética
sucessão de revisões e tem-se servido
invariavelmente
de um vasto conjunto de falsidades, argumentos de
pura conveniência
e outros truques.
Nesse
turvo
conjunto, por vezes nem há qualquer coerência dado
que as forças
de direita (e também o PS) acusam o PCP
de, em 1975-76, ser
contrário à elaboraçãoe entrada em vigor da Constituição
mas, ao mesmo tempo,
são elas que mais atacam o conteúdo da Lei
Fundamental
do país enquanto o PCP é o seu mais firme defensor.
Em
termos
históricos, esta acusação feita ao PCP
serve-se sobretudo
daquela que é, sem dúvida, a maior
falsificação política
posta a circular depois do
25 de Abril de 1974 e à qual bem se
pode aplicar a máxima
de Goebbels de que uma mentira mil vezes
repetida acaba por se tornar
verdade.
Referimo-nos
concretamente
ao que quase toda a gente tranquilamente chama de
«cerco da
Constituinte» – expressão que,
combinada com o sistemático
recurso às imagens
televisivas da concentração de trabalhadores
da
construção civil em frente ao Palácio de S.
Bento em 12 e
13 de Novembro de 1975, pretende atestar ou certificar
que, de
facto, terá havido um grave conflito e antagonismo
entre, de um
lado, o movimento popular, os trabalhadores e o PCP e,
do outro, a
elaboração da Constituição em
que PS, PSD e CDS supostamente
estariam firmemente empenhados.
Nem
os
anos que passaram, nem o pessimismo pessoal sobre as hipóteses
de
se ganhar esta batalha de esclarecimento e rectificação,
nem o
facto de esta monumental falsificação já
ter assumido ares de
«verdade oficial», designadamente
com a sua lamentável inclusão
numa edição
de luxo da Assembleia da República em que se
descreve a
história do Parlamento português, nos podem ou
devem
levar a desistir de combater este deliberado atropelo
à
verdade e grave entorse à história.
Dirigentes
e
responsáveis do PS, do PSD e do CDS, e legiões de
jornalistas e
comentadores já repetiram milhares de vezes a
expressão «cerco
da Constituinte».
Mas
é
exactamente no que sempre omitiram e omitem e no que não
contaram
e não contam que está a verdade dos factos e a
verdade do que
realmente aconteceu.
Porque
todos
sempre omitem que a manifestação-concentração
dos
trabalhadores da construção civil só se
realizou em frente ao
Palácio de S. Bento porque o Ministro do
Trabalho, desrespeitando
compromissos assumidos, encerrou à
última hora as instalações
do Ministério
na Praça de Londres.
Porque
todos
sempre omitem que não foi a Assembleia Constituinte que
foi
«cercada» mas sim o Palácio de S. Bento onde
aquela funcionava
mas onde funcionava também o VI Governo
Provisório e o
Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo, as
únicas entidades a quem
os trabalhadores dirigiram as suas
reivindicações
sócio-laborais.
Porque
todos
sempre omitem que, sendo verdade que, num quadro de
grande
exasperação e radicalismo, os deputados à
Constituinte,
erradamente, também foram impedidos de sair, a
maior e mais
decisiva verdade é que aquela imensa concentração
de
trabalhadores não apresentou quaisquer reivindicações
à
Assembleia Constituinte nem formulou quaisquer
exigências
relativamente à elaboração da Constituição.
Porque
todos
sempre omitem que, por mais que se dessem ao trabalho ampliar
as
fotografias e as imagens televisivas dessa concentração,
jamais
encontrariam nas respectivas faixas e palavras de ordem
qualquer
referência à Assembleia Constituinte e à
elaboração da
Constituição.
De
um
outro ângulo, merecem também referência as
constantes linhas de
ataque à Constituição seja
com pretexto na sua extensão (296
artigos), seja em desacordo
com as suas fortes componentes
programáticas, tudo conveniente
embrulhado em sofismas como a da
«neutralização
ideológica» da Constituição e da
vantagem
de, para o «Estado mínimo» que alguns desejam,
haver
também uma «Constituição mínima».
E
é
assim que, ano após ano se vai fazendo toda uma
intensa
doutrinação sem que os doutrinadores alguma vez
tenham
respondido à sensata objecção de que uma
«Constituição
mínima» significaria
necessariamente criar uma maior latitude e
margem de arbítrio
para os órgãos de soberania, alguma vez
tenham sacudido
a crítica de que eliminar o carácter
ideológico
e programático de certas normas da Constituição
é
viabilizar e consagrar outra ideologia e outro programa,
alguma
vez tenham explicado porque é que os incomoda tanto a
extensão
da Constituição portuguesa e não
os incomodou nada a extensão
da «Constituição
europeia» que continha 456 artigos, fora os
anexos, e que
fervorosamente apoiaram.
Defesa
da
Constituição – uma luta que tem de continuar
Pode
haver
democratas que hoje tendam a desvalorizar a luta em defesa
da
Constituição e pelo seu respeito e cumprimento devido
à
evidência de que o facto de termos tido – e ainda
hoje assim
ser – uma das Constituições mais avançadas
e progressistas do
mundo não poupou o povo e o país –
e, em boa verdade, não
estava ao seu alcance garanti-lo –
aos continuados efeitos da
política de direita praticada por
sucessivos governos com todo o
seu cortejo de desilusões,
injustiças, malfeitorias e
retrocessos.
Mas,
a
este respeito, é necessário lembrar duas coisas
essenciais: a
primeira é que é impossível fazer
a demonstração de que, sem
ela, as coisas teriam
corrido melhor, sendo avisado admitir que a
ofensiva antidemocrática
e a política contrária aos valores e
objectivos
constitucionais teriam chegado ainda mais longe e mais
fundo sem esta
Constituição; a segunda é que por alguma
razão
os sectores políticos que são porta-vozes
e
representantes do grande capital e do neoliberalismo continuam
a
ambicionar proceder a uma grande e drástica «limpeza»
na
Constituição.
E
não
é prudente nem vantajoso ignorar que a eleição
de Cavaco Silva
para Presidente da República introduz, ao
menos de forma reflexa,
no quadro político nacional alterações
que, entre outros eixos
de pressão para o agravamento da
política de direita, não
deixarão de favorecer
maiores pressões para futuras revisões
constitucionais
que desfigurem ainda mais, em múltiplas
vertentes, o regime
democrático consagrado na Constituição.
Escrevendo
isto
não estamos obviamente a prever ou vaticinar que, em
Belém,
Cavaco Silva vai desencadear iniciativas ou tomar
posições
frontalmente inconstitucionais, estamos sim a
chamar a atenção
para que a eleição de
Cavaco Silva é um inegável factor de
estímulo
para as forças económicas e interesses de classe
que
apoiaram a sua candidatura e que essas nunca fizeram as pazes
com a
Constituição e, mais cedo do que tarde, trarão
para a
cena política toda as opções ideológicas
e todos os projectos
que Cavaco Silva zelosamente escondeu e
dissimulou durante a
campanha eleitoral.
E
não
é necessário ter tirado qualquer curso
superior de bruxaria para
saber que, de há muito, o grande
capital e as forças de direita
(e sectores que pesam no PS
dirigido por José Sócrates)
consideram que a
Constituição é ainda um sério obstáculo
à
concretização dos seus projectos em matéria
de direitos dos
trabalhadores, de privatização de
serviços públicos e de
desmantelamento dos sistemas
públicos de saúde, segurança
social e ensino e
talvez mesmo de reconfiguração do sistema
político
e dos poderes dos órgãos de soberania.
O
PCP
e os comunistas portugueses, que têm legítimo
orgulho na
contribuição que deram para a elaboração
da Constituição
aprovada em 1976 e para a fundação
do regime democrático,
continuarão a inscrever na sua
agenda de luta e nos seus
compromissos com o povo português a
defesa activa da Constituição
da República,
texto que continua a ser mil vezes mais moderno do
que o discurso e
as orientações dominantes na vida
política
nacional e que, por isso mesmo, tem futuro e é
essencial para
a construção de um Portugal com futuro.
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