17 de fevereiro de 2012

Na «Imprópria» sobre «as esquerdas»

Respostas de Vítor Dias
ao inquérito no nº 1 da «Imprópria»

A esquerda, a esquerda democrática, as esquerdas, a esquerda comunista, a esquerda reformista, a esquerda revolucionária, uma esquerda popular, a extrema-esquerda, a esquerda transformadora, os socialistas, a esquerda progressista – inúmeras são as expressões que são utilizadas por quem se situa à esquerda do espectro político-ideológico. De que falamos quando falamos de esquerda?


O tipo de questões suscitadas por este inquérito seria sempre um interessante Rossio e qualquer espaço para as respostas, ainda que chegasse ao ponto de maçar os leitores, seria sempre uma pobre Betesga. Prefiro por isso avisar que respondo com uma elevada dose de simplificação, se não mesmo de esquematismo, e que, em regra, afirmarei sem suporte na devida argumentação. Sobre o que é esquerda e o que o não é, apetecer-me-ia dizer que quem tem a sua a acha, naturalmente, a mais consistente e estruturada, a mais promissora e a mais eficaz em termos de avanços civilizacionais e de transformação social.
Creio entretanto que, salvo em circunstâncias excepcionais ou de acompanhamento da linguagem corrente, faz pouco sentido falar da «esquerda», antes sendo mais rico e exacto falar de «esquerdas» (num plural que obviamente põe em evidência a existência de um pluralismo e pluralidade de forças ou organizações diferenciadas). E o que ainda faz menos sentido sãos casos, infelizmente muito numerosos, de jornalistas ou comentadores que, sabendo perfeitamente que estão só falar do PS, em vez de gastarem apenas esses dois caracteres preferem gastar oito referindo a «esquerda».
Dito isto, quero anotar que, por mais voltas que se dê e não procedendo eu a qualquer amálgama brutal entre o PS e o PSD e o CDS, o ponto nodal do impasse português para uma alternativa de esquerda está precisamente em que o PS, a meu ver, não pode ser considerado um partido de esquerda, por muito que, generosamente, queiramos atenuar as suas orientações, políticas e práticas governativas com considerações sobre um seu certo património histórico, aspirações de uma parte porventura ainda significativa da sua base social de apoio e de outros aspectos.
A esquerda com que me identifico tem como matriz fundadora e fundamental elemento identitário o objectivo da superação do capitalismo através da construção de um socialismo que tenha colhido as principais lições dos trágicos fracassos e derrotas do final do século XX e encontrado as respostas possíveis, ainda que provisórias, para as grandes interpelações e desafios que aqueles fracassos colocaram em cima da mesa. Mas para quem, como eu, o processo histórico é movimento de luta e de avanços parciais, e não a espera de uma qualquer «grand soirèe» revolucionária, fala-se de esquerda quando se fala de ideias, forças ou projectos que, em curto, se opõem decididamente à selvajaria neoliberal em curso, mantêm o inabalável propósito de subordinar o poder económico ao poder político democraticamente eleito, defendem os serviços públicos e a sua universalidade, estão comprometidos com o aprofundamento da democracia e com o fomento da participação e intervenção dos cidadãos, com a valorização do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, considerando sempre estes como os principais criadores da riqueza das nações.

Entre a esquerda e os chamados intelectuais é frequente pressupor-se uma relação de afinidade, relação que foi objecto de vários debates ao longo do século XX. Na senda desses debates e no actual contexto de transformação económico-cultural, que relação existe e que relação deve ser procurada entre a acção política e o campo intelectual, da ciência e produção de conhecimento à cultura e produção artística?
Creio que os laços e o seu grau ou intensidade podem variar, mas não concebo que possa haver acção política minimamente consistente sem atenção ou relação estreita com o campo intelectual, com a ciência e produção de conhecimento, com a cultura e produção artística, mas também – é bom lembrá-lo – sem uma sólida radicação social e entrosamento com os problemas e aspirações das pessoas «comuns». A articulação acima referida é tanto mais necessária e indispensável quando se trata da acção política de uma força ou partido organizado e estruturado, onde isso tem de ser feito quer pela integração e activa participação dos intelectuais e criadores que são membros desse partido quer por uma grande atenção e reflexão sobre ideias ou propostas formuladas «exteriormente», mesmo que diferentes ou até hostis ou antagónicas, pois estas são, não poucas vezes, um insubstituível estímulo para o aprofundamento das nossas próprias razões e argumentos.
Porém, ao contrário do que alguns por vezes parecem julgar, não se trata apenas de um problema de vontade ou abertura de espírito. É que a vida de um partido, ou em termos mais gerais de forças ou organizações políticas e sociais, tem características, exigências, condicionantes e constrangimentos, prioridades e exigências de acção e tarefas práticas que, com frequência, reduzem inevitavelmente o espaço para certo tipo de estudos e reflexões. E, por outro lado, há intelectuais, sociólogos, politólogos que, como é seu direito, nunca foram filiados em partidos e que estão, em seu prejuízo e limitação, a anos-luz de realidades até bastantes elementares sobre o que é a vida corrente de um partido político.
Dito isto, e se outras razões não houvesse, até pela crescente complexificação dos problemas e das sociedades, nenhuma dúvida resta de que a relação invocada na questão colocada continuará a ser por muito tempo um acidentado e exigente, mas crucial, desafio e necessidade.


Entre os movimentos sociais e a política institucional, onde fica a esquerda? Que relação entre as diversas formas de participação nas instituições do Estado (parlamento, governo) e formas de acção política que se situam à sua margem? Relação de oposição? De complementaridade?

Entendamo-nos com toda a franqueza: pertenço a uma força política para quem, em grande medida, estas dicotomias e conflitos não fazem grande sentido. Há anos e anos que o PCP – e eu próprio tenho dedicado alguma atenção ao tema – combate a tendência, as concepções e as práticas no sentido de apresentar e tornar os partidos em elementos do aparelho de Estado (tendência sucessivamente patente nas leis de financiamento), e não, como originariamente e de raiz deviam ser, associações voluntárias de mulheres e homens livres, agregados ou unidos em torno de uma ideologia e de um projecto político, que inclui naturalmente o exercício do poder político e a participação nas instituições democráticas (o que não os faz deixar de pertencer à «sociedade civil»). E, de caminho, tenho também causticado com alguma vivacidade essa estranha entorse intelectual que consiste no seguinte: se se fala de partidos, só se vê dirigentes e estruturas e nunca os muitos milhares de cidadãos que neles militam; se se fala de «movimentos de cidadãos», só se vê «cidadãos» e nunca os dirigentes ou estruturas, por reduzidas que sejam. Por outro lado, sou membro de um partido que jamais se limitou a um papel de representação de interesses ou delegação de confiança e que, exercendo-as de facto nas instituições em que está presente, dedica parte fundamental dos seus esforços e da sua organização ao estímulo à intervenção directa dos cidadãos em defesa dos seus interesses ou em causas que mais directamente os mobilizam.
Novos ou antigos, muitos movimentos sociais são uma componente essencial de uma democracia viva, mas, em minha opinião, serão fogos-fátuos ou factores de retrocesso democrático todos os que se alinharem, mais ou menos explicitamente, por uma rejeição generalizante da política, dos políticos e dos partidos.
Os Estados Unidos – muitos o dizem e creio que com razão – são o país mais associativo do mundo, com uma impressionante galáxia de movimentos de opinião, de organizações sociais ou de direitos cívicos, cobrindo uma extraordinária diversidade de centros de interesse e de causas erguidas por uma admirável dedicação e generoso trabalho voluntário de centenas de milhares de cidadãos. No entanto, como sabemos, raramente algo disso consegue romper os deliberados bloqueios criados pelo sistema político norte-americano.
Anotado isto, ainda que da forma incompleta que invoquei no inicio, apenas duas observações:
- uma é que, para mim, permanece válido o apelo final do líder sindical norte-americano do principio do século XX, pouco antes de ser enforcado: «Don´t mourne, organize!»;
- e a outra é que não é porque haja quem não queira tomar conta da política que a política deixará de arbitrariamente tomar conta das suas vidas.


A esquerda tem pátria e classe social? Como se situa a esquerda perante as diferentes escalas do poder político, do local ao global, passando pelo nacional? E em relação às diferentes classes sociais? Como se relaciona a esquerda com as lutas de classes?

 
Creio que com outras correntes de esquerda assim não será, mas a minha esquerda, e com muito orgulho e enraizada convicção, tem pátria (Portugal) e tem classe social (a classe operária, os trabalhadores e diversas outras classes ou camadas sociais que, pelos seus interesses objectivos ou subjectivos, se sentem identificadas ou podem vir a sentir-se identificados com um projecto de superação do capitalismo). A minha esquerda é, coerente e naturalmente, patriótica (e, por causa das moscas, repito um milhão de vezes, não nacionalista) e internacionalista. E, sem negar as complexidades e dificuldades de acerto que por vezes a história traz, não vê conflito entre o local e o global, entre o nacional e o internacional.
A intensificação e aperfeiçoamento de formas de cooperação internacional entre organizações sindicais, outras organizações ou partidos que se reclamam de esquerda é uma difícil mas inadiável tarefa e exigência dos tempos presentes e da própria globalização.
Mas porque os países existem e é neles que vivem os povos e as pessoas (que são os verdadeiros protagonistas da história), para grande escândalo de muitas ideias circulantes, continuo a considerar o marco nacional como o terreno mais decisivo, mais estruturante e mais eficaz para as lutas do presente e do futuro, sem o qual, tudo bem espremido, certas concepções alegadamente «internacionalistas» pouco iriam além do uso da Internet, de comunicações por e-mail e da deslocação de delegações nacionais a alguns eventos de âmbito internacional.
E, a este respeito, porque a actual crise que atravessa o sistema capitalista, como era fácil prever, está dando um novo impulso a favor do federalismo na União Europeia, volto a afirmar que aqueles que, à esquerda, dele se fazem campeões, esquecidos patentemente dos interesses de classe subjacentes e das políticas dominantes, apenas estão a dar a sua ajuda para que as políticas neoliberais sejam ainda mais rigidamente e uniformemente aplicadas em cada país membro da União Europeia.
Por mim, nenhuma esquerda minimamente consequente, mesmo que as não veja como o principal motor da história, pode deixar de considerar que se as classes e os seus interesses existem, então, ainda que de formas por vezes diferentes das do passado, a luta de classes é um processo sempre presente e marcante na história do nosso tempo.

É frequente afirmar-se que o Estado social é uma das conquistas mais importantes das forças políticas e sociais de esquerda e quase todas as esquerda consideram hoje que se trata de um património a proteger, contra as tendências de privatização. Que caminho fazer neste debate, por um lado, entre o público e o privado e, por outro, entre reforma e revolução?



O processo de brutal ataque ao chamado «Estado social» (antes chamar-lhe assim que chamar-lhe «Estado-providência», essa estranha tradução de welfare state), dêem-se as voltas que se derem, é uma das mais expressivas consequências da derrota das experiências de construção do socialismo, já que nunca foi uma benévola concessão das democracias cristãs ou da social-democracia, mas fruto de lutas heróicas dos trabalhadores europeus tendo como elemento animador (e assustador para as classes possidentes nacionais) as conquistas sociais obtidas no Leste europeu. Pertenço a um partido que não sustenta, nem para hoje nem para amanhã, a total estatização da vida económica. A existência de um variado sector privado não está em causa, o que está em causa, já no limite máximo em Portugal, é a violação do princípio constitucional da coexistência de sectores económicos diversificados. Toda a campanha dos grandes grupos económicos contra o papel do Estado é uma pura falácia, uma vez que outra coisa não desejam, e disso têm largamente beneficiado, que o Estado seja um instrumento da concentração capitalista (como foi durante o fascismo).
Mais delicado e prenhe de equívocos e o problema da velha e clássica oposição entre «reforma» e «revolução». Militante de um partido que, já muitos anos antes do 25 de Abril, rejeitava a ideia de «modelos» de revolução, não pretendo transpor para outros países «vias únicas» para a revolução. Para aqueles que, como os comunistas portugueses, aceitam que a sua luta se desenvolve no quadro consagrado na Constituição, a verdadeira dicotomia não estará entre abstracções crismadas de «reforma» ou de «revolução», mas entre reformas (as mais das vezes, contra-reformas) que visam salvar o capitalismo e reformas democráticas e progressistas que não só não são incompatíveis com transformações futuras mais radicais como constituem avanços no acidentado e incerto processo de luta pelo socialismo.

13 de fevereiro de 2012

Tempos de amnésia, mentira e retrocesso


Artigo de Vítor Dias 
na Seara Nova do Inverno de 2011


Embora sempre se deva aconselhar cautela em juízos deste tipo ou similares, atrevo-me a arriscar que vivemos uma das épocas - não, não é uma mera conjuntura - em que aquilo a que muitos, de uma ou de outra forma, temos chamado a crise da memória política e a profunda erosão da noção de processo histórico mais estão pesando na forma como os cidadãos estruturam a sua opinião sobre os factos, as  políticas e os  acontecimentos que sofrem ou decorrem quotidianamente diante dos seus olhos.
Com efeito, designadamente o cidadão comum que não tem uma relação intensa com a política e com o compromisso político só pode sentir-se perdido, aturdido e desorientado não apenas por força da vertiginosa sucessão de acontecimentos e medidas que se repercutem nos interesses e na sua vida e na do seu país mas também e sobretudo por anos e anos de informação fragmentada e descontextualizada e de intoxicação mediática sobre «fatalidades», «inevitabilidades» e «faltas de alternativas», ou seja um conjunto de sofismas martelados até à exaustão precisamente para assegurar a durabilidade e impunidade de opções políticas tomadas e para gerar um correspondente efeito de apatia, conformismo e resignação por parte dos cidadãos.
Dito de outra forma, basta reparar se é ou não verdade se hoje desfilam perante nós e desabam sobre nós, todos os dias, semanas e meses, notícias sobre problemas, escolhas, decisões, mais e mais medidas de austeridade que nos são apresentadas com se existissem e vivessem de per si e como se não tivessem nenhum nexo próximo ou distante com problemas, opções e decisões tomadas há cinco, dez ou vinte anos.
E, como será fácil de entender, são esta aposta no apagamento da memória colectiva e esta profundíssima rasura da noção de ​processo histórico que muito facilitam essa repugnante farsa da democracia que se pode exemplificar, por exemplo, com aqueles protagonistas políticos que hoje se apresentam como excelsos e ardorosos combatentes contra o défice ou a dívida mesmo que, no anterior exercício de funções governativas, para um a para a outra bastante tenham contribuído ou, outro exemplo, nos apareçam a verter lágrimas abundantes sobre o declínio da produção nacional, sobre o abandono dos nossos campos, o desaproveitamento do nosso mar ou a desertificação do interior deixando sempre na sombra que, ao longo de mais de 30 anos, as políticas que defenderam e conscientemente aplicaram a outro resultado não podiam ter conduzido.

E isto para já não falar no exemplo - da maior actualidade - de todos aqueles que hoje, sem pudor nem memória, seja à direita, ao centro ou no centro-esquerda, reconhecem com infinita calma que a adesão de Portugal ao euro afectou obviamente a competitividade da economia portuguesa (Passo Coelho dixit numa entrevista televisiva) ou que o euro padeceu de graves erros na sua criação e arquitectura, sempre escondendo e não assumindo que, durante mais de uma década, foram acriticamente  deslumbrados com a moeda única e procuraram trucidar e isolar politicamente todos quantos se atreveram atempadamente a levantar reservas, a fazer perguntas, a exigir esclarecimentos e estudos, a esboçar ou desenhar alternativas.
Neste contexto, creio que poderá ter alguma utilidade chamar a atenção, sem preocupações de hierarquia e sem qualquer carácter exaustivo, para três2grossas falsidades e truques duradouros que, tendo incidências diferenciadas, dada a indiscutível hegemonia que têm no discurso político ou na opinião publicada, têm desempenhado um papel importante na formatação das consciências de amplos sectores sociais. 
A primeira e talvez a mais estruturalmente grave dessas falsidades consiste em apresentar todo um vastíssimo conjunto de elementos - desde certos efeitos mais perversos da ​globalização até às perdas de soberania nacional, desde «os compromissos que Portugal tem de honrar» até aos condicionalismos e  constrangimentos externos, desde a ditadura dos mercados e a sua cegueira selvagem até ao nefando papel das agências de rating, passando - como sendo algo que está aí, ponto final, parágrafo, algo que nos foi imposto sem ligarem à nossa vontade, algo que  foi caindo do céu aos trambolhões ou algo que, para os mais sofistificados, resulta apenas do normal fluir da evolução das «economias de mercado» (o termo «capitalismo» só teve uma relativamente breve vida e ressurgimento na imprensa mundial no auge da crise de 2008).
Segundo esta ficção ou coreografia minuciosamente estudada, dir-se-ia que, entre muitas outras, não houve uma coisa chamada liberalização dos movimentos de capitais (um artigo recente na insuspeita Le Nouvel Observateur detalhava o papel capital de Mitterand, Delors e outros socialistas franceses no avanço desse processo à escala da Europa), uma coisa chamada Tratado de Maastrich, uma coisa chamada criação da moeda única,  uma coisa chamada negociações do Uruguay Round e criação da Organização Mundial do Comércio etc., etc. - ou seja todo um vasto conjunto de instrumentos e decisões de âmbito e efeitos supranacionais que só puderam ser ser concretizados na base da vtade de Estados soberanos e com as assinaturas manuscritas e a presença em pessoa de primeiro-ministros ou Presidentes da República, incluindo, como é bom de ver, de Portugal.
É por isso que de há muito sustento que, ao contrário do que é corrente, os únicos que tem legitimidade política e ética para falar de «condicionalismos» ou «constrangimentos externos» são os que a eles se opuseram e nunca por nunca ser aqueles que os defenderam, apoiaram ou subscreveram.
E é também por isso que, nesta matéria, gosto sempre de recordar a corajosa e franca  afirmação feita numa sua obra de 1987, ainda muita coisa ia no adro, pelo economista francês (giscardiano) Lionel Stoleru. Propondo que se dê desconto ​àquele «nós», ela aqui fica para informação e reflexão: «Estes pretendidos  «constrangimentos» internacionais somos nós próprios que os quisémos, somos nós próprios que os edificámos e somos nós próprios que, dia após dia, nos empenhamos em os desenvolver. Nós não temos mais liberdade de acção porque nós não quisemos mais ter liberdade de acção» (in L'Ambition Internationale).
Uma  segunda importante falsidade teve largo curso em Portugal nos meses que precederam o pedido de  demissão do Governo do PS dirigido José Sócrates e ganhou novo fôlego com a política executada pelo novo governo do PSD dirigido por Passos Coelho e tem sido protagonizada por sectores ou personalidades do PS que, na ânsia de descobrirem ou inventarem territórios verbais  de demarcação com a direita, passaram  a dirigir as suas críticas às principais orientações no curso da presente crise à União Europeia e ao facto de a grande maioria dos países membros ter governos de direita.
Assim convenientemente embalados, esquecem-se obviamente da evidência historicamente comprovada de que todos os tratados e passos  de evolução quer da então CEE quer da posterior UE se basearam nos consensos e acordos entre os partidos democratas-cristãos e os partidos social-democratas ou socialistas e que, desde o ínicio da chamada «construção europeia» até hoje a história não regista nenhuma grave ou dramática confrontação entre essas duas famílias políticas. E até se esquecem concretamente que o próprio Mário Soares (personalidade que tem a especial caracteristica de vergastar o neo-liberalismo em todo o mundo e nunca o ver quando está à frente dos seus olhos no nosso país, nomeadamente quando é aplicado pelo PS), num passado não muito distante, verberou criticamente o facto de ter sido precisamente nos anos em que os socialistas governavam 11 dos então quinze países da UE que as orientações neoliberais tiveram um maior impulso e desenvolvimento na Europa.
E, peço desculpa por qualquer coisinha, mas não posso fechar ​este ponto sem aludir a um inquietante e desastroso traço comum entre governos de direita e governos do PS em relação à União Europeia: é que sabe-se que Portugal é, de direito e com iguais direitos, membro pleno da União Europeia mas isso nunca se nota nas orientações, nas atitudes e nas posições que os governos nacionais ali defendem, mais parecendo que Portugal é ainda, 25 depois de ter sido admitido, um país candidato à adesão.
A terceira falsidade consiste em fazer crer que todo o brutal e desumano conjunto de ataques, agressões, medidas de austeridade eretrocessos que já estava desenhado no memorando de entendimento entre a troika estrangeira - UE, BCE e FMI - e a troika nacional - Governo do PS, PSD e CDS - e tem vindo a ser alargado pelo actual governo PSD-CDS são uma mera decorrência da necessidade de conter o défice ou enfrentar o problema da dívida.
Ora, mesmo deixando generosa e benevolentemente de lado a minha (e a de muitos outros) convicção profunda que o conjunto das medidas adoptadas não resolverá nenhum dos problemas mais invocados antes os agravará deixando um rasto de empobrecimento e destruição, a verdade é que há toda uma série de medidas adoptadas, impostas ou propostas  pelo governo que não tem a mais pequena relação com o défice, com a competitividade ou com o pagamento dos encargos com a dívida, bastando para o efeito citar, a título de curto exemplo, a acrescida meia hora de trabalho diário, o corte de feriados, a baixa da TSU para as empresas, etc., etc.
Verdadeiramente o que está acontecer é que, para a direita portuguesa e europeia e para os interesses de classe que representa, a crise, o défice e a dívida representam uma oportunidade de ouro e um incomparável pretexto e cobertura para um desde sempre desejado e ansiado ajuste de contas com os avanços sociais, económicos e políticos filhos da Revolução de Abril para estabelecer um ainda maior desiquilibrio nas relações ​entre o capital e o trabalho (veja-se como o príncipio democrático básico da contratação colectiva é agora quase semanalmente espezinhado por decretos ou leis governamentais) e, la crème de la crème, e promover uma brutal, devastadora e mafiosa transferência de recursos financeiros e património da esfera pública para o grande capital.
Aqui chegado, entendo não dever ocultar dos leitores que, embora o escrevesse pouco, sou dos que, com fundamento em experiências políticas anteriores, muitas vezes pensaram que, dado que a sua etiqueta de «socialista» anestesiava largos sectores populares, o PS era o mais eficaz na execução da política de direita e que não seria fatal como o destino que um governo de direita fosse necessariamente mais longe na política de agressão aos interesses populares, precisamente por carência de base social de suporte e por passar a contar com uma mais viva e real oposição do PS e sobretudo dos seus eleitores. 
Nunca sabemos como teria sido de outro modo e não pretendo ter razão a toda a força. Mas creio que as minhas conjecturas a tal respeito (que, sublinhe-se, não interferiam em nada nas minhas opções de voto e de pertença e projecto políticos) não se confirmaram por consequência de dois factores distintos de situações precedentes: a primeira é a própria situação de crise e a sua dramatização e interiorização em termos erróneos pela maioria do eleitorado; e a segunda é o facto de o PS estar amarrado ao e prisioneiro do memorando de entendimento com a troika, o que constitui uma parcial fonte de legitimação de parte substancial da política do PSD que este naturalmente convenientemente explora e continuará a explorar.
Sim, como o título propositadamente diz, estes são tempos de amnésia, de mentira e de retrocesso. Mas isso, nem deveria ser preciso dizê-lo, é apenas um escolhido ângulo de análise e um fragmento, ainda que importante, da realidade actual. Porque estes são também tempos de uma vasta e muito diversificada ​torrente de lutas, de uma indignação e consciencialização que tendem a crescer e não a diminuir, de um processo de confluência de descontentamentos, iniciativas e de capacidades combativas que podem não satisfazer os que querem resultados palpáveis e imediatos para o que é, pelas situações concretas e correlações de forças, díficil e eventualmente moroso mas são a única alternativa honrosa à rendição e à resignação humilhantes e são a única esperança de salvar os portugueses e Portugal de um bárbaro retrocesso civilizacional.
​​