Artigo de Vítor Dias
na Seara Nova do Inverno de 2011
Embora
sempre se deva aconselhar cautela em juízos deste tipo ou similares, atrevo-me
a arriscar que vivemos uma das épocas - não, não é uma mera
conjuntura - em que aquilo a que muitos, de uma ou de outra forma, temos
chamado a crise da memória política e a profunda erosão da noção de processo
histórico mais estão pesando na forma como os cidadãos estruturam a sua
opinião sobre os factos, as políticas e os acontecimentos que
sofrem ou decorrem quotidianamente diante dos seus olhos.
Com
efeito, designadamente o cidadão comum que não tem uma relação intensa com
a política e com o compromisso político só pode sentir-se perdido, aturdido e
desorientado não apenas por força da vertiginosa sucessão de acontecimentos e
medidas que se repercutem nos interesses e na sua vida e na do seu país mas
também e sobretudo por anos e anos de informação fragmentada e
descontextualizada e de intoxicação mediática sobre «fatalidades»,
«inevitabilidades» e «faltas de alternativas», ou seja um conjunto de sofismas
martelados até à exaustão precisamente para assegurar a durabilidade e
impunidade de opções políticas tomadas e para gerar um correspondente efeito de
apatia, conformismo e resignação por parte dos cidadãos.
Dito
de outra forma, basta reparar se é ou não verdade se hoje desfilam perante nós
e desabam sobre nós, todos os dias, semanas e meses, notícias sobre problemas,
escolhas, decisões, mais e mais medidas de austeridade que nos são apresentadas
com se existissem e vivessem de per si e como se não tivessem nenhum nexo
próximo ou distante com problemas, opções e decisões tomadas há cinco, dez
ou vinte anos.
E,
como será fácil de entender, são esta aposta no apagamento da memória colectiva
e esta profundíssima rasura da noção de processo histórico que muito facilitam
essa repugnante farsa da democracia que se pode exemplificar, por exemplo, com
aqueles protagonistas políticos que hoje se apresentam como excelsos e
ardorosos combatentes contra o défice ou a dívida mesmo que, no anterior
exercício de funções governativas, para um a para a outra bastante tenham
contribuído ou, outro exemplo, nos apareçam a verter lágrimas abundantes sobre
o declínio da produção nacional, sobre o abandono dos nossos campos, o
desaproveitamento do nosso mar ou a desertificação do interior deixando sempre
na sombra que, ao longo de mais de 30 anos, as políticas que defenderam e
conscientemente aplicaram a outro resultado não podiam ter conduzido.
E isto para já não falar no exemplo - da maior actualidade - de todos aqueles que hoje, sem pudor nem memória, seja à direita, ao centro ou no centro-esquerda, reconhecem com infinita calma que a adesão de Portugal ao euro afectou obviamente a competitividade da economia portuguesa (Passo Coelho dixit numa entrevista televisiva) ou que o euro padeceu de graves erros na sua criação e arquitectura, sempre escondendo e não assumindo que, durante mais de uma década, foram acriticamente deslumbrados com a moeda única e procuraram trucidar e isolar politicamente todos quantos se atreveram atempadamente a levantar reservas, a fazer perguntas, a exigir esclarecimentos e estudos, a esboçar ou desenhar alternativas.
E isto para já não falar no exemplo - da maior actualidade - de todos aqueles que hoje, sem pudor nem memória, seja à direita, ao centro ou no centro-esquerda, reconhecem com infinita calma que a adesão de Portugal ao euro afectou obviamente a competitividade da economia portuguesa (Passo Coelho dixit numa entrevista televisiva) ou que o euro padeceu de graves erros na sua criação e arquitectura, sempre escondendo e não assumindo que, durante mais de uma década, foram acriticamente deslumbrados com a moeda única e procuraram trucidar e isolar politicamente todos quantos se atreveram atempadamente a levantar reservas, a fazer perguntas, a exigir esclarecimentos e estudos, a esboçar ou desenhar alternativas.
Neste
contexto, creio que poderá ter alguma utilidade chamar a atenção, sem
preocupações de hierarquia e sem qualquer carácter exaustivo, para três2grossas falsidades e truques
duradouros que, tendo incidências diferenciadas, dada a indiscutível hegemonia
que têm no discurso político ou na opinião publicada, têm desempenhado um papel
importante na formatação das consciências de amplos sectores
sociais.
A primeira e talvez a mais
estruturalmente grave dessas falsidades consiste em apresentar todo um
vastíssimo conjunto de elementos - desde certos efeitos mais perversos da
globalização até às perdas de soberania nacional, desde «os compromissos que Portugal tem de honrar» até aos
condicionalismos e constrangimentos externos, desde a ditadura dos
mercados e a sua cegueira selvagem até ao nefando papel das agências de rating, passando - como sendo algo que está aí, ponto final, parágrafo, algo que
nos foi imposto sem ligarem à nossa vontade, algo que foi caindo do céu
aos trambolhões ou algo que, para os mais sofistificados, resulta apenas do
normal fluir da evolução das «economias
de mercado» (o termo «capitalismo» só teve uma relativamente breve vida e
ressurgimento na imprensa mundial no auge da crise de 2008).
Segundo esta
ficção ou coreografia minuciosamente estudada, dir-se-ia que, entre muitas
outras, não houve uma coisa chamada liberalização dos movimentos de capitais
(um artigo recente na insuspeita Le Nouvel
Observateur detalhava o papel capital de Mitterand, Delors e outros
socialistas franceses no avanço desse processo à escala da Europa), uma coisa
chamada Tratado de Maastrich, uma coisa chamada criação da moeda
única, uma coisa chamada negociações do Uruguay Round e criação da Organização Mundial do Comércio etc.,
etc. - ou seja todo um vasto conjunto de instrumentos e decisões de âmbito e
efeitos supranacionais que só puderam ser ser concretizados na base da vtade de
Estados soberanos e com as assinaturas manuscritas e a presença em pessoa de
primeiro-ministros ou Presidentes da República, incluindo, como é bom de ver,
de Portugal.
É por
isso que de há muito sustento que, ao contrário do que é corrente, os únicos
que tem legitimidade política e ética para falar de «condicionalismos» ou
«constrangimentos externos» são os que a eles se opuseram e nunca por nunca ser
aqueles que os defenderam, apoiaram ou subscreveram.
E é também
por isso que, nesta matéria, gosto sempre de recordar a corajosa e franca
afirmação feita numa sua obra de 1987, ainda muita coisa ia no adro, pelo
economista francês (giscardiano) Lionel Stoleru. Propondo que se dê desconto
àquele «nós», ela aqui fica para informação e reflexão: «Estes pretendidos «constrangimentos»
internacionais somos nós próprios que os quisémos, somos nós próprios que
os edificámos e somos nós próprios que, dia após dia, nos empenhamos em os
desenvolver. Nós não temos mais liberdade de acção porque nós não quisemos mais
ter liberdade de acção» (in L'Ambition
Internationale).
Uma segunda
importante falsidade teve largo curso em Portugal nos meses que precederam
o pedido de demissão do Governo do PS dirigido José Sócrates e ganhou
novo fôlego com a política executada pelo novo governo do PSD dirigido por
Passos Coelho e tem sido protagonizada por sectores ou
personalidades do PS que, na ânsia de descobrirem ou inventarem
territórios verbais de demarcação com a direita, passaram a
dirigir as suas críticas às principais orientações no curso da presente crise à
União Europeia e ao facto de a grande maioria dos países membros ter governos
de direita.
Assim
convenientemente embalados, esquecem-se obviamente da evidência historicamente
comprovada de que todos os tratados e passos de evolução quer da então
CEE quer da posterior UE se basearam nos consensos e acordos entre os partidos
democratas-cristãos e os partidos social-democratas ou socialistas e que, desde
o ínicio da chamada «construção europeia» até hoje a história não regista
nenhuma grave ou dramática confrontação entre essas duas famílias políticas. E
até se esquecem concretamente que o próprio Mário Soares (personalidade que tem
a especial caracteristica de vergastar o neo-liberalismo em todo o mundo e
nunca o ver quando está à frente dos seus olhos no nosso país, nomeadamente
quando é aplicado pelo PS), num passado não muito distante, verberou
criticamente o facto de ter sido precisamente nos anos em que os socialistas governavam
11 dos então quinze países da UE que as orientações neoliberais tiveram um
maior impulso e desenvolvimento na Europa.
E,
peço desculpa por qualquer coisinha, mas não posso fechar este ponto sem
aludir a um inquietante e desastroso traço comum entre governos de direita e
governos do PS em relação à União Europeia: é que sabe-se que Portugal é, de
direito e com iguais direitos, membro pleno da União Europeia mas isso nunca se
nota nas orientações, nas atitudes e nas posições que os governos nacionais
ali defendem, mais parecendo que Portugal é ainda, 25 depois de ter sido
admitido, um país candidato à adesão.
A terceira falsidade consiste em fazer
crer que todo o brutal e desumano conjunto de ataques, agressões, medidas
de austeridade eretrocessos que já estava desenhado no memorando de
entendimento entre a troika estrangeira - UE, BCE e FMI - e a troika nacional -
Governo do PS, PSD e CDS - e tem vindo a ser alargado pelo actual governo
PSD-CDS são uma mera decorrência da necessidade de conter o défice ou enfrentar
o problema da dívida.
Ora,
mesmo deixando generosa e benevolentemente de lado a minha (e a de muitos
outros) convicção profunda que o conjunto das medidas adoptadas não resolverá
nenhum dos problemas mais invocados antes os agravará deixando um rasto de
empobrecimento e destruição, a verdade é que há toda uma série de medidas
adoptadas, impostas ou propostas pelo governo que não tem a mais pequena
relação com o défice, com a competitividade ou com o pagamento dos encargos
com a dívida, bastando para o efeito citar, a título de curto exemplo, a
acrescida meia hora de trabalho diário, o corte de feriados, a baixa da TSU
para as empresas, etc., etc.
Verdadeiramente
o que está acontecer é que, para a direita portuguesa e europeia e para os
interesses de classe que representa, a crise, o défice e a dívida representam
uma oportunidade de ouro e um incomparável pretexto e cobertura para um desde
sempre desejado e ansiado ajuste de contas com os avanços sociais,
económicos e políticos filhos da Revolução de Abril para estabelecer um ainda
maior desiquilibrio nas relações entre o capital e o trabalho (veja-se como o
príncipio democrático básico da contratação colectiva é agora quase
semanalmente espezinhado por decretos ou leis governamentais) e, la crème de la crème, e promover uma
brutal, devastadora e mafiosa transferência de recursos financeiros e
património da esfera pública para o grande capital.
Aqui
chegado, entendo não dever ocultar dos leitores que, embora o escrevesse pouco,
sou dos que, com fundamento em experiências políticas anteriores, muitas
vezes pensaram que, dado que a sua etiqueta de «socialista» anestesiava
largos sectores populares, o PS era o mais eficaz na execução da política de
direita e que não seria fatal como o destino que um governo de direita
fosse necessariamente mais longe na política de agressão aos interesses
populares, precisamente por carência de base social de suporte e por passar a
contar com uma mais viva e real oposição do PS e sobretudo dos seus
eleitores.
Nunca
sabemos como teria sido de outro modo e não pretendo ter razão a toda a
força. Mas creio que as minhas conjecturas a tal respeito (que, sublinhe-se,
não interferiam em nada nas minhas opções de voto e de pertença e projecto
políticos) não se confirmaram por consequência de dois factores distintos
de situações precedentes: a primeira é a própria situação de crise e a sua
dramatização e interiorização em termos erróneos pela maioria do eleitorado; e
a segunda é o facto de o PS estar amarrado ao e prisioneiro do memorando de
entendimento com a troika, o que constitui uma parcial fonte de legitimação de
parte substancial da política do PSD que este naturalmente convenientemente
explora e continuará a explorar.
Sim,
como o título propositadamente diz, estes são tempos de amnésia, de
mentira e de retrocesso. Mas isso, nem deveria ser preciso dizê-lo, é apenas um
escolhido ângulo de análise e um fragmento, ainda que importante, da realidade
actual. Porque estes são também tempos de uma vasta e muito diversificada
torrente de lutas, de uma indignação e consciencialização que tendem a crescer
e não a diminuir, de um processo de confluência de descontentamentos,
iniciativas e de capacidades combativas que podem não satisfazer os que querem
resultados palpáveis e imediatos para o que é, pelas situações concretas e
correlações de forças, díficil e eventualmente moroso mas são a única
alternativa honrosa à rendição e à resignação humilhantes e são a única
esperança de salvar os portugueses e Portugal de um bárbaro retrocesso
civilizacional.
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