30 de maio de 2014

No 90º aniversário de J.M. Varela Gomes

Intervenção de sua filha
Geninha Varela Gomes
Ao meu Pai, João Varela Gomes, no seu 90.º aniversário
Desta vez, coube-me a mim falar em nome dos filhos. É uma imensa responsabilidade que não enjeitei e um sentimento de orgulho impossível de medir.
Começo por agradecer à Casa do Alentejo, nomeadamente ao seu presidente, João Proença, pelo pronto acolhimento dado a este almoço de aniversário e por todas as facilidades concedidas, sem qualquer hesitação. Agradeço igualmente a todos os que contribuíram para a organização desta festa: ao meu Tio João Sequeira, ao Manuel Duran Clemente e ao Raul Zagalo, indispensáveis e incansáveis na concretização dos convites e na sua confirmação. À Maria Adelaide devo todo o socorro e apoio no quotidiano da organização de uma festa desta envergadura.
Por fim, agradeço a presença de todos. Como sabem, esta celebração não é pública. Todos os que aqui estão foram pessoalmente convidados. São por ele, pelo meu Pai, reconhecidos como amigos, companheiros, camaradas de armas. São por ele respeitados e acarinhados. Fazem parte da vida do meu Pai. O nosso obrigado a todos.
Apesar de gostar mais de falar de improviso, optei por escrever e ler este papel. Tive medo de não aguentar. E mesmo assim… vamos lá ver! Os tempos não estão fáceis e tenho a emoção e a sensibilidade à flor da pele. É uma das heranças do meu Pai. Como ele costuma dizer quando se refere às crianças, a qualquer criança, tive medo de ficar “com as pernas partidas”, isto é, sem defesas.
Muito do que aqui vou dizer sobre o meu Pai, é igualmente extensível à minha Mãe. Somos uma família unida por laços absolutamente indestrutíveis pelo amor, pela adversidade, pela luta e pela tragédia. Provavelmente, quando a minha Mãe fizer 90 anos, irei repetir grande parte do que hoje, aqui, vos vou dizer.
Esta festa de aniversário do meu Pai é-lhe devida há 46 anos. 1968 foi o ano em que o meu Pai completou 44 anos de idade. Foi o ano em que foi libertado. Às 6 horas da manhã do dia 1 de Janeiro desse ano, numa madrugada escura e gelada, abriu-se o portão do Forte de Peniche e saiu um homem ainda jovem, mas aparentemente envelhecido, silencioso e de boca crispada. Galgou o lambril inferior da porta e de imediato se ouviu o som forte do seu encerramento brusco. Cá fora, a minha Mãe e 4 miúdos ansiosos e nervosos.
Nesse ano, para festejar a sua saída da cadeia e o seu aniversário, os meus pais quiseram organizar uma festa com os amigos, no dia 24 de Maio, na Casa da Horta, a casa grande do meu avô. A PIDE proibiu a realização da festa. Era uma reunião perigosa e subversiva. A alegria da recém-readquirida liberdade esbarrou logo na ingenuidade “telefónica” dos organizadores e no medo enorme que a PIDE tinha do meu Pai e do que ele representava ou podia representar.
Este almoço de aniversário em que nos encontramos, por circunstâncias diversas e adversas da vida, levou 46 anos a preparar. Mas para nós, nunca ninguém tanto o mereceu.
Meu Querido Pai João:
Era assim que nós os quatro, seus filhos miúdos, iniciávamos as cartas que lhe escrevíamos durante os seus 6 longos anos de cadeia. Não era um qualquer “querido pai”. Era o Pai João, o nosso Pai e de mais ninguém.
E essa sim, apesar de o Pai ser completamente avesso à propriedade material, é uma propriedade verdadeiramente inalienável e intransmissível.
Nem sempre foi fácil sermos filhos dos nossos pais. Em Janeiro de 1962, eramos todos muito pequenos, fomos literalmente despertados, a meio da noite, para a luta antifascista. Desde muito cedo que a linha divisória entre o BEM e o MAL ficou traçada na nossa matriz.
Quero aproveitar esta oportunidade, a celebração dos 90 anos do meu Pai para, em público, agradecer em nosso nome, em nome da família Varela Gomes, a todos os que nesses anos de dificuldades nos deitaram a mão, nos aguentaram, nos deram guarida, comida, solidariedade e, principalmente, amor. Especialmente a todos os nossos TIOS, com particular destaque para o Tio Fernando. Quero também lembrar os Tios já falecidos, que nunca nos falharam: Ticha, Luís, Francisca e Cândida. Acima de todos, queremos agradecer ao nosso Avô Joaquim, para a minha geração o verdadeiro patriarca e senhor do castelo encantado que era a Casa da Horta. Temos para com todos uma dívida que nunca poderá ser saldada.
Ser filho de alguém que é reconhecido por Herói por muita gente… e por inimigo figadal por outra tanta (felizmente, em número menor), provocou sentimentos e reacções contraditórias em todos nós. Durante muito tempo, antes de pronunciarem o nosso nome, fomos sempre apresentados como sendo filhos de… e de…E se caíamos na asneira de dizer primeiro o nosso nome, vinha logo a pergunta certa: “É filho ou filha de…?”. Tivemos de percorrer a vida e o caminho da maturidade para encarar esse facto com serenidade.
O meu Pai, para nós, é perfeito… apesar de todos os seus defeitos, que me escuso de enumerar por não ser isso que aqui nos trouxe! Nós os quatro sempre tivemos por ele um imenso e profundo respeito, admiração e amor. Para o meu irmão Chapi, que lembro com uma enorme saudade que nunca se apaga, estes sentimentos eram absolutamente incondicionais e inabaláveis.
O meu Pai e a minha Mãe ensinaram-nos a coragem e a gramática; a lealdade e a matemática; a frontalidade e a geografia; a honestidade e a filosofia; a solidariedade e a história; a responsabilidade e a literatura; a generosidade e a físico-química. Alimentaram-nos, vestiram-nos, educaram-nos, acarinharam-nos. Proporcionaram-nos livros, filmes, conversas, reflexões, teatro, dança, viagens. Ensinaram-nos a fazer pela vida e a ser pessoas úteis e activas, quase desconhecedoras do significado do verbo “desistir”. Onde até a escolha da morte pode ser e foi uma forma de afirmação e de resistência.
Ensinaram-nos a lutar! Mostraram-nos o lado certo da barricada! Num instante passámos do mundo dos índios e dos cow-boys, para o mundo dos explorados e oprimidos, de um lado, e dos exploradores e opressores do outro. E nunca, em nossa casa, houve um momento, um instante sequer, de hesitação sobre o lado certo da vida, o caminho que devia ser percorrido. A vida foi mais pesada, é certo, mas foi e é uma vida que merece ser vivida.
PAI: a sua vida e a sua luta foram e são, por inteiro, merecedoras de todo o nosso apoio e respeito.
É certo que provocaram ódios irracionais e perseguições arbitrárias e injustas.
É certo que o ter estado às portas da morte, a prisão (antes e depois do 25 de Abril) e os diversos exílios (antes e depois do 25 de Abril), nos roubaram muitos anos de convívio e de aprendizagem, de amor e de vida familiar.
Mas o seu legado de coragem, de coerência, de honestidade e de luta é incomensuravelmente mais importante e muitíssimo maior do que as adversidades e revezes passados.
E sem nunca querer nada em troca. Sem nunca querer benesses ou reconhecimentos hipócritas. Sem nunca querer tirar dividendos ou vantagens. Antes pelo contrário!
PAI: O seu exemplo está marcado bem fundo nas nossas vidas e no nosso carácter. Nas nossas, seus filhos, e na dos seus netos. Os seus netos tiveram o privilégio de poder contar sempre consigo. De poder passar consigo uma infância de que nós, seus filhos, fomos espoliados. E o amor, a atenção, a disponibilidade, a brincadeira educativa e o apoio constante dispensado aos seus netos foram para os seus filhos a compensação dos anos que nos roubaram. E para os seus netos, algo que será, para sempre, insubstituível.
Passados 90 anos de vida e 52 anos sobre a sua prisão, infelizmente não podemos dizer que o mundo e o país são aquilo por que lutou toda a vida. Mas dizemos com toda a firmeza que empenhou toda a sua vida para os tornar melhor e mais justos. Que arriscou a sua vida para conquistar a liberdade e para acabar com os parasitas e com a exploração de quem trabalha.
Termino com alguns curtos excertos da defesa por si apresentada na barra do tribunal fascista, o Tribunal Plenário da Boa-Hora, no julgamento da Revolta de Beja. Continuam actuais, são o espelho do seu carácter e marcaram decisivamente as escolhas e a vida de todos nós:
(e cito) “…Mas se a caminhada tem sido penosa, se numerosas têm sido as baixas e pesados os sacrifícios, algo de extremamente precioso se conquistou para cada um de nós e para a colectividade: uma nova fraternidade que foi forjada na luta comum travada sem tibiezas nem renúncias….”
(e mais à frente) “…E é esse laço fraterno que me fica unindo a Vocês, meus companheiros em Beja na madrugada do primeiro dia de 1962 e que através de 30 meses de prisão aqui trouxeram uma inalterada fé e inquebrantável ânimo, que nos liga a todos que em Portugal não temem e que aqui ergueram uma voz firme e não ambígua…”
(segue mais abaixo) “…E se na primeira fila de resistência tem sempre havido representantes de todos os quadrantes doutrinários, é justo destacar os comunistas portugueses pela sua indefectível presença e avultado quinhão de sofrimento. O que faço à vontade, pois que nem a PIDE, com todo o seu fanatismo inquisitorial, me conseguiu vestir esse sambenito…”
(e finaliza) “…Ao abandonar esta barra, o meu mais fervoroso voto, o meu apelo, é que, quanto antes, outros triunfem onde nós fomos vencidos, pela salvação da nossa Pátria bem amada.”
Casa do Alentejo, Lisboa, 24 de Maio de 2014
Geninha Varela Gomes