A Minha História de Vida
A infância
Nasci “de passagem” em São Tomé e Príncipe. Fui levado pelos meus pais com seis meses de idade para Angola, onde, foi-me dito mais tarde, o meu pai se tornou um dos grandes especialistas na produção de café, tendo trabalhado, como “capataz”, em algumas das principais fazendas do Norte de Angola, mais precisamente na Província do Uíge, até se tornar proprietário da sua própria fazenda, a que deu o nome da minha avó paterna, Laura, situada algures entre Quitexe e Vila Nova de Caipemba.
Dos anos mais recuados da minha infância, guardo memórias dispersas de uma vida serena e feliz, entre brincadeiras nos capinzais e florestas, a subida às árvores para colher sumarentos frutos (mangas, goiabas…) e uma total ausência de medo face aos animais e animaizinhos que por ali partilhavam o espaço comigo e eventuais amigos. Também recordo algumas vivências ternurentas com a minha irmã, três anos mais velha do que eu (dado que a qualidade de menina não aconselhava muito a sua permanências naquelas terras inóspitas, o meu pai enviou-a alguns anos depois para a “metrópole”, para ser educada pela minha avó Laura, em Vila Nova de Foz-Côa; ela nunca perdoou tal facto ao meu pai, mas essa é outra história…).
Chegado o momento de começar a aprender as “letras”, fui remetido para Luanda, onde me inscreveram num colégio para fazer a pré-primária, tendo ficado instalado em casa de um casal amigo dos meus pais. Tinha então cinco anos e acho que me saí bem.
Entretanto, chegou o momento de o meu pai se decidir a avançar com a sua própria fazenda de café, o que fez em sociedade com um seu irmão e meu tio. Este meu tio ficou instalado em Vila Nova de Caipemba, onde também tinha uma loja, e tratava da parte “burocrática” da fazenda (o meu pai era o responsável pelo andamento das coisas no terreno). E foi para casa do meu tio que fui recambiado após terminar a pré-primária.
Caipemba era uma vila relativamente recente e apenas nesse ano estava a ser construída a escola primária. Mas já havia sido contratada uma professora, que começou por me dar aulas em privado até a escola ser inaugurada, uns meses depois.
A frequência da escola primária foi estimulante. Tive a vantagem de o meu tio ser um leitor compulsivo e ter muitos livros em casa, embora ele não se preocupasse muito em “orientar” as minhas leituras. Assim eu comecei muito cedo a ler tudo o que apanhava, desde a Bíblia até livros policiais, o que naturalmente fez com que me distinguisse com alguma facilidade na escola, onde fui sempre o melhor aluno, tendo terminado a 4ª classe e feito o exame de admissão ao Liceu com “brilhantismo”, como me recordo de a minha professora primária (de cujo nome, curiosamente, me esqueci) ter classificado o “feito”.
Entrei então para o Liceu e lá fui outra vez para Luanda, desta vez para casa de uns primos afastados da parte da minha mãe.
E foi quando o “meu” mundo se desmoronou.
Em 11 de Março de 1961, um movimento nacionalista denominado União dos Povos de Angola (UPA, que posteriormente alterou a designação para Frente Nacional para a Libertação de Angola – FNLA) desencadeou os massacres que estiveram na génese da guerra colonial.
Não me vou deter muito neste ponto porque os factos são conhecidos e porque, ainda hoje, é-me um tanto doloroso falar no assunto. Os meus pais e os seus empregados foram chacinados na fazenda. Acontece que eu estava de férias da Páscoa mas, ao contrário do que havia sucedido noutros anos, não fui passar as férias na fazenda e fiquei em casa do meu tio, em Caipemba. Só por isso sobrevivi, mas, ainda assim, vi demasiadas coisas que uma criança de 11 anos de idade não deveria ver, de todo. A vila esteve cercada pelos “terroristas” durante dois dias, até chegar uma força militar oriunda de Carmona (hoje Uíge) que repôs a “ordem” (igualmente com recurso a alguns massacres) e tratou da retirada das mulheres e crianças, em camioneta, para o Negage, onde havia um aeroporto militar, e depois para Luanda, de avião (foi o meu baptismo de voo). O meu tio ficou e nunca mais o vi.
Em Luanda, fui acolhido num centro de refugiados. Posteriormente, a Cruz Vermelha Portuguesa interessou-se pelo meu “caso” e optou pelo meu internamento na Casa Pia de Lisboa (Colégio Pina Manique).
Assim, um belo dia de Janeiro de 1962, fui entregue a uma hospedeira de bordo no aeroporto de Luanda (onde estariam uns 30 graus centígrados de temperatura) e umas horas depois chegava a Lisboa (onde estariam para aí uns 5 graus centígrados). E eu com o meu “fatinho-da-comunhão”, sem forro. Tive tanto frio que até as unhas dos pés batiam palmas… Ainda hoje me recordo de uma sopa que me deram quando cheguei à delegação da Cruz Vermelha Portuguesa (em frente ao Jardim Zoológico). Mas não me recordo do sabor da sopa, e sim que era… quente!
A adolescência
Os primeiros tempos no Colégio Pina Manique foram terríveis. Além do frio a que não estava habituado (nascera em pleno Equador e vivera até aos 11 anos num dos territórios mais quentes e húmidos de África), não sendo propriamente um “menino rico”, poderia dizer-se que tivera até então uma existência confortável e, de certo modo, protegida. De repente, tudo era diferente, desde a comida aos hábitos e… capacidade de sobrevivência.
Ainda me recordo do ar espantado do preceptor quando, a meio da tarde do primeiro dia, lhe perguntei com o ar mais cândido: “A que horas é o lanche?”. Lanche? (eh eh eh).
Assim como me lembro de haver um “ritual” no refeitório a que levei algum tempo a adaptar-me: as mesas eram de seis alunos, sempre os mesmos durante um ano lectivo, se bem recordo; para que não houvesse confusões, em cada refeição um dos alunos era o primeiro a servir-se, da sopa, conduto e fruta - e ia rodando até dar a volta à mesa, sucessivamente; ora bem, nas primeiras refeições em que participei, como “bem educadinho” que era, quando me calhava ser o primeiro a escolher, escolhia a posta de peixe mais pequena ou a fruta com ar menos apetitoso (na convicção de que os outros fariam o mesmo quando fosse a vez deles); está-se mesmo a ver que rapidamente me apercebi de que ficava sempre com o pior bocado, fosse o primeiro ou o último a escolher. E, naturalmente, aprendi uma regra de sobrevivência…
Tive muita dificuldade em adaptar-me ao clima (invariavelmente ia parar à Enfermaria em Dezembro - como nasci a 23 de Dezembro, os aniversários eram sempre passados na cama, de tal maneira que acabei por ser de algum modo “adoptado” pela enfermeira, que me levava sempre umas guloseimas aniversariantes).
Mas lá acabei por adaptar-me e os anos passaram. Tirei o Curso Geral de Comércio, vertente esteno-dactilografia. Já nessa altura pensava que gostaria de ser jornalista, pelo que me parecia ser o único curso dos então disponíveis em Pina Manique que se adaptava de algum modo a essa pretensão (também havia Tipografia, mas a minha falta de jeito em trabalhos “manuais” desaconselhou-me essa via).
Fui um aluno mediano. Apenas me destacava em Português, que terminei com média de 17. Olhando à distância, julgo que poderia ter sido muito melhor aluno, mas faltavam-me estímulos. Recordo, por exemplo, um episódio: um dia o professor de Cálculo Comercial passou-me uma descompostura durante a aula, chamando-me preguiçoso e outras coisas mais; fiquei furioso e decidi dar-lhe a resposta; agarrei-me aos livros e nas semanas seguintes fiz exercícios e mais exercícios; no teste seguinte, o meu teste estava perfeito, tudo certo, era para 20; no dia da distribuição de resultados, o professor olhou para mim e disse que não acreditava que não tivesse copiado; e deu-me 10, por especial deferência... Claro que nunca mais me preocupei com aquela disciplina (ou, por outra, preocupei-me o suficiente para passar…).
Fora das aulas fui um razoável praticante de desporto. Joguei andebol nos torneios inter-escolas e futebol no Casa Pia Atlético Clube (apenas nos juvenis, porque entretanto surgiram outros interesses e deixei o futebol).
Um dos interesses era a leitura. Fui eu que desencadeei o embrião de uma biblioteca que, espero, tenha frutificado em Pina Manique. Aproveitando as aulas práticas de dactilografia, lembrei-me de escrever para todas as editoras a solicitar a doação de livros. Não esperava tão boa reacção. Chegaram caixotes e caixotes de livros.
Terminado o curso, dado que não tinha qualquer familiar em Lisboa (como já disse, a minha irmã estava em Vila Nova de Foz-Côa, com a minha avó paterna; também por ali estavam mais duas tias paternas e alguns primos, mas, sem querer ser demasiado cruel, diria que era gente mazinha, excepção feita à minha irmã, claro) fui para o Lar de Stº António, entretanto criado exactamente para apoiar o pessoal que saía de Pina Manique e não tinha para onde ir.
Concorri e entrei para o meu primeiro emprego, como escriturário, na então Federação Nacional dos Produtores de Trigo (posteriormente EPAC).
Comecei então a descobrir algumas das boas coisinhas da vida que tinham estado até então um bocado desavindas (o namoro, por exemplo). E comecei a desenvolver alguma consciência política. Lentamente, percebi que as circunstâncias do que me tinha acontecido em Angola eram bem mais complexas do que julgara. E desatei a ler. Muito. E a conviver. Foram tempos agradáveis.
A tropa
E chegou o momento de ingressar no Serviço Militar Obrigatório. Com a consciência política recém-adquirida, cheguei a ponderar a deserção. Por um lado, apesar do trauma que me fora infligido em Angola, ganhara consciência de quão disparatada era a Guerra Colonial; por outro lado, precisamente pelos acontecimentos que presenciara, não tinha muito bem a certeza de como reagiria se confrontado com a guerra propriamente dita (de arma na mão).
Ponderados os prós e os contras, decidi avançar e lá me apresentei ao serviço militar. Felizmente, por mero acaso, já que não tinha “cunhas”, fui parar a uma “especialidade”, digamos, anódina (para o caso): Administração Militar. Uma maravilha.
Após os trâmites habituais (recruta, especialidade), fui mobilizado, em rendição individual, para Moçambique, com destino ao Quartel-General, em Nampula.
Lá embarquei no navio Infante D. Henrique e, dado que se tratava de uma “rendição individual”, viajei como qualquer passageiro (sem as chatices da “tropa”). Foi magnífica a viagem (daria para um capítulo à parte).
Melhor ainda: chegado a Lourenço Marques (hoje Maputo), dado que um camarada estava já há dois meses à espera do substituto que nunca mais chegava (vim a saber mais tarde que o presumível substituto era filho de um general, que “bloqueara” a sua ida para Moçambique), fui sumariamente “requisitado” para ficar no Batalhão de Intendência de Lourenço Marques, onde passei dois simpáticos anos de férias sem dar um tiro numa guerra que não me agradava de todo. Nada mau.
E depois…
Quando se aproximava o final da minha “comissão de serviço” em Moçambique, comecei a matutar: “O que raio vou fazer para a Metrópole? Não tenho lá nada de apelativo (a não ser a minha irmã, mas, enfim, lá seguirá o seu caminho, e uma namorada que entretanto seguira outros caminhos – tal como eu, aliás)”.
E foi então que ponderei num facto: havia duas tias (irmãs da minha mãe) que tinham ficado em Angola (também eram naturais de São Tomé e Príncipe e, dado serem mais novas, foram “chamadas” pela minha mãe para Angola, onde construíram a sua vivência). Pensei então que se calhar não era má ideia regressar a Angola, pelo menos para ver como paravam as coisas. E assim foi: fiz um requerimento ao Chefe do Estado-Maior e, em vez de vir “passar à disponibilidade” na Metrópole, fui de Moçambique para Angola e disse adeus à tropa no Quartel do Grafanil, em Viana (arredores de Luanda).
Uma das minhas tias residia então em Salazar (hoje N’Dalatando, capital da província do Kuanza Norte) e foi para aí que me dirigi.
Estávamos no ano de 1973 e ali me fixei, tornando-me trabalhador bancário (Banco Comercial de Angola).
E deu-se o 25 de Abril de 1974.
Tempos conturbados
O 25 de Abril apanhou-me um bocadinho “desprevenido”. Apesar de razoavelmente politizado, talvez porque ao tempo não partidariamente empenhado, não entrevi o acontecimento. Mas aconteceu.
E as coisas complicaram-se. Salazar (hoje N’Dalatando) viveu o chamado “período de transição” como muitas outras localidades angolanas. Foi palco de dois violentos confrontos, em períodos distintos, em que, no primeiro, a FNLA saiu “vitoriosa”, remetendo o MPLA para “o mato” (ou longínqua periferia da cidade) e, no segundo e definitivo, o MPLA “varreu” a FNLA do terreno (a UNITA, por ali, limitava-se a fazer figura de corpo presente).
Vivi, mais uma vez, momentos inolvidáveis. Mas também essas são outras histórias.
Chegou-se a uma situação em que era completamente impossível a cidade continuar a funcionar como espaço convivial. E uma coluna de carros civis, enquadrada por viaturas militares portuguesas (da Metrópole), partiu para Luanda com toda a população (branca, mestiça) de Salazar (hoje N’Dalatando).
E assim voltei mais uma vez a Luanda. Onde fiquei durante alguns meses.
Os meus tios e primos vieram para a Metrópole na “ponte aérea dos retornados”, mas eu decidi ficar para ver como evoluía a situação.
Fui ficando, sempre como funcionário do Banco Comercial de Angola, vivendo aqueles momentos exaltantes de descoberta da “democracia”, até que uma bela noite, numa tertúlia de café, em plena discussão sobre as opções e virtualidades políticas, um distinto fulano interrompeu o meu raciocínio dizendo: “Meu caro, não admito que um tipo mais ‘claro’ do que eu me levante a voz!”. Ele era negro e eu sou mestiço (ou mulato).
No dia seguinte, dei o meu carro ao marido da outra minha tia (que foi a única da família que ficou, ainda por mais algum tempo, em Angola), fui para o aeroporto de Luanda, e vim para Lisboa.
Aqui chegado (a Lisboa), reencontrei a minha antiga namorada (que entretanto tivera uma filha e já se divorciara do marido), que me disse com um ar muito sério: “Nunca te perdoarei que te tenhas vindo embora…”. Ela acreditava, muito sinceramente, que o povo angolano, todo ele, precisava da minha ajuda para ser feliz por todo o tempo. Coisas dos tempos mais ou menos revolucionários...
E a vida continua…
Mas quando cheguei, digamos, estava com uma mão à frente e outra atrás. Fui, naturalmente, refugiar-me em casa da minha irmã (aquela mesma que tinha sido “despachada” pelo meu pai para Vila Nova de Foz-Côa e que, entretanto, tinha dado asas à sua vida e se fixara na cidade do Porto, onde se casara e construíra a sua prole, ao tempo apenas uma filha, posteriormente mais dois rapazes).
Por ali deambulei, com um bocado de frio, e fui assistindo à “consolidação” da democracia portuguesa.
Arranjei um emprego, como funcionário administrativo, no Hospital Joaquim Urbano.
Mas se o clima de Lisboa, para quem nasceu em São Tomé e Príncipe, é um pouco agreste, o do Porto, então, deixem-me que vos diga: houve um ano em que, sem exagero, vivi literalmente, durante dois meses seguidinhos, sem interrupção, debaixo da chamada “chuva-molha-tolos” (ou “chuva-molha-otário”, na versão brasileira).
Cansei-me e voltei para Lisboa.
Claro que entretanto (e estas coisas nunca são inocentes), havia uma miúda pelo meio. A minha primeira mulher, a Lena, foi uma coisa boa que me aconteceu. Morreu, vinte anos depois, de cancro do estômago, e foi pena.
Chegado novamente a Lisboa, o meu amigo Orlando César, filho de Orlando Gonçalves (um homem com H grande), deu-me algum apoio e estive uns tempos a trabalhar na tipografia do “Notícias da Amadora”, jornal em que entretanto começara a colaborar também como jornalista.
Juntei entretanto “os trapinhos” com a Lena e, dado que havia sido bancário em Angola, “aproveitei” a hipótese de transferência de quadros e tornei-me bancário na Metrópole. Fui, durante alguns anos, funcionário do então Crédito Predial Português (embora, a bem da verdade, em grande parte do tempo em funções de “defesa dos interesses dos trabalhadores”, designadamente na Comissão de Trabalhadores da instituição).
Mas a banca não era, decididamente, a minha vocação. E ingressei no jornalismo. Primeiro no extinto jornal “O Diário”, conotado partidariamente mas que, ao tempo, exerceu um jornalismo de excelência (ao nível formal e de conteúdo). Passei depois pelo Diário Económico, semanário Expresso, revista Valor e canal de televisão SIC. Foram muitos anos de experiências inolvidáveis.
Entretanto, alguns anos após a morte da minha primeira mulher, “juntei os trapinhos” com a segunda, Ana, com quem actualmente resmungo ternurentamente ao final da noite. Não tive filhos, o que de algum modo lamento, embora, olhando para 11 de Março de 1961, me vá questionando: será que teria valido a pena?
De qualquer modo, posso sempre dizer (citando uma frase muito em voga) que vivi “acima das minhas possibilidades”.
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